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Kriança Índia: Brancos, fiquem longe da floresta!

“A gente não precisa matar pessoalmente um branco pra ficar contente. Basta o branco morrer que tá tudo bem”. Essa fala da personagem principal de Kriança Índia dá um pouco do tom dessa obra lançada em 2021 pela editora Guará. No melhor estilo nazi lives don’t matter todos os agentes da destruição da floresta amazônica são sumariamente executados. Caçadores, madeireiros e ruralistas encontram seu fim na lança da Kriança Índia.

A personagem criada por Rafa Campos e desenhada por Álvaro Maia é uma criança indígena sem um etnia definida, nem gênero. Como um espírito protetor, ela enfrenta todos os perigos que ameaçam a floresta, acompanhada de seus amigos Kavera, um macaco com cabeça de caveira, e Peçonha, um porco-espinho que lança espinhos venenosos. O livro traz diversas histórias curtas que vão se entrelaçando e contando um pouco da vida da Kriança Índia, de como ela foi encontrada e criada por Matinta Pereira, a bruxa do folclore brasileiro.

O roteiro de Rafa Campos consegue nos brindar com muitas sequencias de ação e, ao mesmo tempo, apresentar a trama que liga todas as partes do livro. Sem falar nas diversas referências à conjuntura política atual, com vilões como Regininha Ruralista, Ministra Danaris, o miliciano Sales e aparições de membros da família Bolsonaro.

É bom lembrar que essa hq já se envolveu em polêmica quando entrou no radar das hordas bolsonaristas na internet. Kriança Índia e seus autores, bem como outros artistas e obras, saíram em uma matéria de um blog de apoiadores de Bolsonaro. Apresentados como assassinos em potencial, o texto tentava chamar a atenção das autoridades sobre os artistas.

Quanto às artes, Álvaro Maia imprime uma variedade de estilos, que deixa a leitura ainda mais dinâmica. Ora prevalecendo as hachuras, ora os grandes contrastes de preto e branco. Com um traço muito orgânico, ele dá um ar fanzineiro à publicação, o que combina muito com a história e deixa a obra ainda mais coesa.

Kriança Índia é uma catarse para todos e todas que tremem de indignação com a devastação e genocídio levados à cabo por um governo comandado por milicianos, garimpeiros, madeireiros e demais escória que precisa ser varrida da nossa sociedade.

Para adquirir o livro, você pode entrar no site da editora Guará.

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Ajuricaba: quadrinho conta história de líder indígena amazônico.

Por Rafael

No final de 2020 fiquei sabendo, através de um compartilhamento de rede social, sobre uma História em Quadrinhos chamada Ajuricaba, que contava a história do indígena de mesmo nome que liderou uma guerra de cinco anos contra os portugueses na região da Amazônia. Fiquei muito curioso e encomendei a HQ.

Capa de Ajuricaba.

Publicada pelo selo Black Eye Studio, o livro possui cerca de 130 páginas de quadrinhos em preto e branco. Escrita por Ademar Vieira, com arte de Jucylande Júnior, a história nos apresenta Ajuricaba, filho do cacique do povo Manao, que mais tarde tomará o lugar de seu pai e enfrentará os portugueses em uma guerra sangrenta e desleal.

A arte estilizada e os contrastes muito bem feitos constroem o clima da história. Que é pesado, como pesado foi o massacre sofrido pelos povos amazônicos no período da conquista europeia. Onde os portugueses adentravam a floresta e invadiam as aldeias, executando pessoas sumariamente e acorrentando homens, mulheres e crianças, sem nenhuma cerimônia. A obra consegue mostrar de forma crua a realidade vivida pelos povos originários do Brasil.

Ajuricaba, o líder do povo Manao, obtém sucesso quando consegue, por um período de tempo, unificar todos os povos da Amazônia numa aliança poderosa, que encarou de igual para igual as forças portuguesas. As rivalidades entre os indígenas, até então, havia sido habilmente manipulada pelos conquistadores para levar adiante o projeto colonial.

Enfim, do povo Manao, hoje em dia, resta muito pouco, nada mais que algumas palavras do seu idioma, como informa o material complementar no final da HQ. O nome da cidade de Manaus, capital do Amazonas, foi escolhido em sua homenagem, talvez para nos lembrar do genocídio cometido nesse país e esquecido por muitos. Equívoco que o livro Ajuricaba vem para corrigir.

Leia também:

Samaúma: o chamado da floresta

A Queda do Céu: o pacto entre dois mundos.

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Samaúma: o chamado da floresta

Capa do livro

Samaúma é o nome de uma árvore encontrada na floresta amazônica, de tronco muito alto – ultrapassando o dossel da floresta – e raízes tão largas que seria possível entalhar uma casa nelas. Samaúma também é o nome da história em quadrinhos de autoria de Fabio Gimovski, lançada, recentemente, através de um financiamento coletivo, pela plataforma Catarse.

Samaúma: o chamado da floresta conta a história de Ravi, um rapaz da cidade grande que, de repente, é assaltado por sonhos enigmáticos. Às vezes, ouve seu nome ser chamado, outras, está caminhando em uma floresta e, outras ainda, está conversando com um pajé. Uma angustia começa a tomar o seu coração, durante o dia. Então, com a ajuda de uma amiga, decide descobrir o que os sonhos significam. Sua busca o levará para o interior do Acre, onde, em meio a floresta amazônica, se encontrará com o povo shanenawa.   

Uma das páginas do livro

O autor optou por uma espécie de metalinguagem, que nos faz pensar que ele conta sua própria história, a de alguém que escreveu um livro sobre suas experiências com os shanenawa. E parece que o objetivo principal do trabalho é apresentar as histórias desse povo, contadas ao jovem Ravi pelos seus representantes. Nelas, ficamos sabendo da origem dos shanenawa e de como eles descobriram o poder da bebida uni.

A história ainda faz menção à realidade que vivemos no Brasil atualmente, de devastação dos biomas e ataques aos povos indígenas. E nos apresenta um outro modo de vida, uma outra visão de mundo em relação à natureza, que é a dos povos originários, onde os valores são muito distintos aos da sociedade industrial capitalista.

Para saber mais sobre o autor: https://fabiogimovski.org/

Para saber mais sobre o povo shanenawa: https://www.indios.org.br/pt/Povo:Shanenawa    

Post relacionado: https://yvycomics.com/2019/01/20/os-indios-de-andre-toral/

Conheça meu livro: Yvytu e o Palavra Bonita.

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A Queda do Céu: o pacto entre dois mundos.

a queda docéu
Capa do livro.

Nem Disney, nem Marvel, muito menos DC, seriam capazes de criar tantas histórias quanto a mitologia yanomami consegue. Exagero? Faça as suas conclusões, lendo A Queda do Céu, obra de autoria do líder desse povo, Davi Kopenawa, e do antropólogo francês, Bruce Albert. Lançado, primeiramente em língua francesa, só foi publicado no Brasil no ano de 2010, pela Cia das Letras. O livro é fruto de um pacto, como coloca Albert, entre dois mundos.

Pacto entre o mundo do antropólogo, pesquisador da cidade, e o mundo do Xamã, o intelectual da floresta. Diferentemente de um trabalho científico, onde um lado relata e analisa o comportamento e a vida do outro, este livro é uma obra escrita por ambos. Pois, ainda que Albert tenha sido o redator das páginas, cada ideia e parágrafo foram supervisionados por Kopenawa. De modo que o produto final representa o depoimento histórico e analítico sobre a luta e a cultura do povo yanomami, feito por um dos seus.

Na obra, temos uma apresentação da rica visão de mundo yanomami e dos seus mitos da criação, onde Omama, o grande criador de tudo, tem papel destacado. Dentro dessa cosmovisão, animais e humanos possuem a mesma origem. Fazendo-os, igualmente, habitantes da floresta, como irmãos. Mas, o mais impressionante, para alguém da cultura letrada, urbana e industrial, é como suas incontáveis histórias passam de geração a geração, de forma oral. Cabendo aos xamãs, o que poderíamos chamar de bibliotecas vivas, o dever de guardá-las. Essas histórias, além de contar como tudo surgiu (inclusive os brancos e suas mercadorias), também organizam o modo de ser desse povo. Elas guardam os ensinamentos de proteção da floresta e das pessoas ao seu redor.    

davi kopenawa
Imagem do interior do livro. Kopenawa é o indígena sem pintura no corpo, abaixo e a esquerda da faixa.

Outro ponto que chama muito a atenção é a análise que Kopenawa faz da socidade dos brancos. Acabamos por nos sentir no papel de objeto de estudo. Para o xamã, estamos sempre tontos, perdidos, procurando orientação nos “desenhos de palavras” que colocamos nas “peles de papel”, pois não somos capazes de guarda-las em nós mesmos. Estamos sempre confusos com o barulho dos motores e o zumbido dos aparelhos de rádio e televisão. O “ruído”, como Kopenawa se refere. Ruído que os brancos levaram para o interior da floresta e também causou confusão na cabeça do seu povo, sobretudo para os jovens, que se encantaram com os equipamentos e mercadorias da cidade, esquecendo-se de suas histórias e de seus espíritos. Sem os seus espíritos, chamados de xapiri, os yanomami não podem existir, como o xamã explica. Eles são responsáveis por evitar “a queda do céu”, por cuidar das doenças, por favorecer a colheita e a caça. Assim como os brancos aprendem com seus livros, os yanomami aprendem com seus xapiri.

Relacionado: Ideias para adiar o fim do mundo.

A história da amizade de 30 anos entre Bruce Albert e Davi Kopenawa, que possibilitou a elaboração do livro, poderia muito bem ser transformada em filme. Albert testemunhou a execução dos megaprojetos de “desenvolvimento” da ditadura militar na floresta amazônica e acompanhou missionários e agentes da FUNAI em suas atividades. Numa dessas, ele encontrou o jovem Kopenawa, que trabalhava como interprete para o posto da FUNAI do rio Demini, no estado de Roraima. Mas a relação levou muito tempo para se consolidar. Só mais tarde, o yanomami vai enxergar no francês um aliado na proteção da floresta e da vida do seu povo. O livro ainda traz um detalhado glossário de palavras yanomami referentes a animais, plantas e topônimos da região. Além da aterradora história do massacre de Haximu, onde mulheres, crianças e idosos yanomami foram mortos por garimpeiros. Ler o livro agora, em 2020, em pleno governo Bolsonaro, em plena hecatombe ambiental brasileira, é chocar-se com a realidade. Não são apenas “desenhos de palavras” em uma “pele de papel”. O que vamos fazer para evitar o nosso fim? Fica a reflexão.

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Descomplincando com Kaê Guajajara: o que você precisa saber sobre os povos originários e como ajudar na luta anti-racista.

Kaê Guajajara

Por Rafael.

Recentemente adquiri a versão pdf do livro organizado pela artista e ativista indígena Kaê Guajajara. Trata-se de uma importante obra para o momento em que vivemos, onde, cada vez mais, os direitos dos povos indígenas por suas terras e seus modos de vida são atacados.

O livro é totalmente produzido por representantes dos diferentes povos indígenas brasileiros e se dirige, principalmente, à população não-indígena, branca e/ou habitantes dos centros urbanos.  O objetivo da obra é desmistificar alguns conceitos deturpados que circulam pela sociedade brasileira, em relação aos nativos americanos, ajudando os interessados em apoiar a causa a entendê-la e agir para tal.

Uma das primeiras ideias a ser descontruída na obra é a de “descobrimento” do Brasil, afirmando a importância de se usar o conceito de “invasão”, bem mais adequado para a situação. Depois, temos o debate sobre o uso do termo “índio”, sobre a escravização indígena – pouco comentada – e a catequese. Busca-se entender o processo colonial como um processo de genocídio e etnocídio, conceitos que também são trabalhados no livro.

Entre muitos temas apresentados, nos deparamos com algumas “curiosidades”, se podemos dizer assim. Como o caso da origem da palavra “grilagem”, se referindo ao roubo das terras indígenas, e o uso das palavras “tibira”, que se refere aos indígenas LGBT, e “parente”, que é como os povos originários se dirigem uns aos outros, independentemente de suas etnias.

Mas, um dos capítulos mais importantes, ao meu ver, é o que se destina a explicar as maneiras como nós, não-indígenas, podemos apoiar a causa desse povo, ou melhor, desses povos. E acredite, não é muito difícil fazer isso. Você pode começar indo no perfil da loja Azuruhu no instagram e entrar em contato com eles para descobrir como receber o pdf do livro, que teve sua versão impressa suspensa por causa da pandemia.

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Os indígenas e a tecnologia

Por Rafael

“Índio com telefone”? Quantas vezes já não ouvimos alguém fazer uma pergunta semelhante a essa ao ver algum representante dos povos indígenas utilizando uma tecnologia moderna qualquer? Como se alguém, não importa quem seja, tivesse sua identidade apagada ao usar algum artefato que não pertença, originalmente, a sua cultura. Ninguém sofre essa acusação mais do que os povos indígenas. Isso é uma coisa engraçada, pois nunca vi alguém lançar o mesmo questionamento a um brasileiro de origem alemã que estivesse tomando chimarrão, por exemplo. Bom, vamos conversar um pouco sobre isso neste texto.

Durante minhas pesquisas para elaborar o universo narrativo de YVY, descobri que o mundo da tecnologia e das redes sociais está, felizmente, sendo cada vez mais ocupado pelos povos indígenas, do Brasil e do mundo.  Eles encontraram, nesse ambiente, um meio para divulgar e valorizar suas identidades enquanto povos originários. Temos canais do youtube, páginas de facebook, blogs, perfis de instagram, entre outros, alimentados por representantes dos mais diferentes grupos, com as mais diversas finalidades. São muitos os jovens que, individualmente, usam essas mídias para exporem sua cultura, seu modo de vida, seus gostos e suas lutas. Mas, também, temos organizações indígenas, grupos musicais e artísticos de todos os gêneros.

A geógrafa Doreen Massey, em seu livro ”Pelo Espaço”, analisa a forma capitalista de ver o mundo, desde os seus inícios nas chamadas grandes navegações. Para os europeus, o espaço terrestre, vamos dizer assim, é apenas uma superfície a ser conquistada. O encontro com os povos americanos, ao se depararem com este continente, foi apenas um acidente de percurso. Ou seja, os povos indígenas seriam apenas um acontecimento fortuito na trajetória triunfante da colonização. Não se tratariam de povos com sua própria história e cultura a ser considerada e respeitada. Daí vem uma distinção muito comum que é feita por muitas pessoas: os “povos adiantados” e os “povos atrasados”. Ou seja, é realizada uma distinção temporal entre povos diferentes que compartilham o mesmo espaço, o planeta Terra, no caso.  É uma distinção que não respeita a diversidade.

Porém, ao se apropriarem da tecnologia elaborada pela sociedade capitalista, os povos indígenas dão sinal de que não estão confortáveis dentro desse papel imposto a eles pelo projeto colonizador. Não querem ser o “acidente” da história de outros, da narrativa de outros. Mostram que almejam o papel de protagonistas de suas próprias histórias. Nesse contexto, trago alguns exemplos, entre muitos, dessa apropriação subversiva da tecnologia pelos povos originários.

Talvez, um dos pioneiros, salvo engano, seja o grupo de rap Bro MCs. Na ativa desde 2009, o grupo foi formado por jovens da etnia Guarani Kaiowá, do interior do Mato Grosso do Sul. Cantando em português e guarani, denunciam as mazelas que se abatem sobre seu povo, desde a violência do agronegócio e a discriminação, até o alcoolismo e drogadição em suas aldeias. Já lançaram diversos clipes no youtube. Como Eju Orendive, Koangagua e Nhe’ê Mbaratê.

bro mcs

Essa apropriação do rap, não parece ser por acaso. Como todos sabem, esse estilo musical oriundo dos guetos estadunidenses ganhou projeção mundial e é usado como instrumento de expressão para os mais diversos povos oprimidos do mundo, como a população de origem árabe da França e os palestinos que vivem em territórios ocupados pelo estado de Israel. Nada mais normal que os povos indígenas também se identificassem com esse estilo. É o caso dos outros dois exemplos que trago aqui.

Tendo lançado, recentemente, o clipe Xondaro Ka’aguy Reguá, o jovem Kunumi MC não começou agora sua trajetória de luta em favor de seu povo. Pertencente à etnia Guarani (não descobri de qual ramo, na minha pesquisa), Werá Jeguaka Mirim, como se chama o rapper, é aquele garoto indígena que, na abertura da copa do mundo do Brasil, quebrou o roteiro e estendeu um cartaz onde se lia “demarcação já”. Além do lançamento recente, Kunumi postou outros clipes na plataforma youtube: O Kunumi chegou e Somos Guerreiros Daqui, entre outros.

kunumi mc

Outro representante indígena nessa luta é a rapper e atriz Katu, de origem Boe Bororo, um povo do Brasil central. Tendo angariado milhares de seguidores na plataforma instagram, Katu, criada na periferia da cidade de São Paulo, usa esse espaço para falar de como ela busca se aproximar de suas origens indígenas, denunciando a violência histórica e sistêmica que a levou a se separar delas.  Identificada, também, com a comunidade lgbt, Katu, além de cantar, atua como modelo fotográfica e atriz, tendo participado do último de clipe da cantora Iza, chamado Let Me Be The One.

katu

Mas a apropriação indígena das tecnologias atuais vai além do rap. Trago, também, o exemplo do perfil de instagram, Literatura Indígena Brasileira. Administrado pela jovem de origem Pataxó, Carina Oliveira. Nele, temos dicas de leitura e entrevistas com escritores oriundos dos mais diversos povos indígenas do Brasil. São contadores e contadoras de histórias, pensadores e pensadoras, poetas e poetisas que, entre outras coisas, expressam a cultura de seus povos, sua visão de mundo e seus desafios para sobreviver na excludente sociedade brasileira. Carina já entrevistou, em lives, nomes consagrados da área como Daniel Munduruku e Ailton Krenak.

literatura indígena brasileira

Para encerrar a lista de exemplos, trago o perfil Índio Meme, também da plataforma instagram. Aqui, vemos a apropriação da novíssima linguagem dos memes pelos povos indígenas. Nesse perfil, podemos acompanhar postagens em tom mais cômico, procurando expressar costumes das aldeias, comparações engraçadas entre a cultura indígena e a dos brancos e, em alguns momentos, postagens em tom de denúncia, ainda que de forma cômica, dos problemas que afetam suas comunidades.

indio meme

Concluo, repetindo que apresentei apenas alguns exemplos. Nas redes sociais, encontramos muitos outros, não só do Brasil, mas também do mundo. Acompanhar, curtir, compartilhar, valorizar essas formas de expressão, é o mínimo que todos os brasileiros podem fazer para compensar os séculos de agressões que esses povos sofreram e continuam sofrendo. Eles parecem estar se saindo bem com a tecnologia da sociedade capitalista. Poderíamos, os não-indígenas, nos sair tão bem na sociedade indígena?

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YVY-Mistérios da Terra/Capítulo 15 – final

                                                 

̶  Yvytu! Achamos o velho Nhee Porã!  ̶ As luzes do dia já se faziam presente sobre o rio Uruguai, e Eva e Odara caminhavam juntas entre os destroços da batalha, quando ouviram o aviso. Era um grupo de guaranis que estavam no interior da mata procurando sobreviventes. Ela correu depressa para o local. Encontrou o avô caído, de barriga para cima. Um ferimento de bala no lado direito do tórax vertia sangue.

Eva se abaixou e, com cuidado, ergueu o velho Moreyra pelos ombros. O pescoço dele não acompanhou o movimento do corpo, pendendo para trás. Ela aconchegou a cabeça do avô em seu peito. Tudo era silêncio na mata. O Palavra Bonita havia se calado para sempre.

Então, alguém se aproximou de Eva, por trás, tocando-lhe o ombro. Era o padre Antônio.

̶  O senhor aqui, padre?  ̶  Eva tinha a voz um pouco embargada.

̶  Claro, minha filha. Fiquei de longe, rezando por você. Como eu já disse, uma vez, você é especial.

Outros guaranis se aproximaram deles e carregaram o corpo do velho Moreyra, o Nhee Porã, para uma canoa. Todos voltariam para a Redução, onde, ao que tudo indica, teria paz por mais algum tempo.

Em meio aos preparativos, Eva notou Odara, à beira do rio, de braços cruzados. A jovem de pele negra tinha um olhar vago, fixo na água corrente, e sorriu, um sorriso afetuoso, quando se voltou para a jovem de pele vermelha que se aproximava dela.

̶  Então, você já sabe o que vai fazer?  ̶  Eva devolvia o sorriso.

̶  Não sei, mas gostaria de voltar para o lugar de onde vim, de onde me arrancaram.

A guarani se aproximou da ex-escreva, tocando-lhe um dos ombros.

­ ̶  Gostaria de ajudar, se eu pudesse  ̶  Odara, apenas sorriu, mais uma vez.

̶  Sabe  ̶   Eva continuou  ̶  preciso acompanhar meu povo ao Yvy Maraêy. A terra sem males.

Odara ficou pensativa por uns instantes, com os olhos imersos na correnteza do rio. Então, perguntou.

̶  E onde fica isso, essa terra sem males?

̶  Não sei, mas meu avô me ensinou que fica em algum lugar à leste. Do outro lado, de lá, da grande água.

Enquanto as duas conversavam, canoas iam cruzando o rio Uruguai, algumas pessoas abanavam para Eva. A jovem guarani havia conquistado uma posição importante entre seu povo.  Odara notava isso, e se voltou para sua nova amiga.

̶  Você disse do outro lado da grande água? Engraçado, é de lá que eu vim.

Capítulo 1

 

 

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YVY – Mistérios da Terra/Capítulo 14

Eva não conseguiu decifrar o sentimento no semblante de padre Antônio, quando ela disse que não acompanharia a retirada da Redução e tentaria atrasar o passo dos brasileiros. Ele estaria desapontado com ela por não os acompanhar? Ou a sua expressão representaria incredulidade quanto ao sucesso da empreitada de Eva? De qualquer forma, antes de escurecer, a guarani, o velho Moreyra e Odara partiram, todos a cavalo, para o acampamento dos bandeirantes.

Quando os três se aproximaram do acampamento, apenas a lua e as tochas que carregavam iluminavam a floresta. Odara pôde reconhecer a árvore de largas raízes em que deixara Jerônima. Porém, o corpo da amiga não estava mais lá.

 

̶  Você tem certeza de que a colocou aqui?  ̶  Perguntou a guarani.

̶  Sim, ela já estava sem vida… como isso é possível?

Avô e neta se entreolharam, tinham dúvidas quanto às palavras de Odara. Então, decidiram que aquela não era hora para se preocuparem com aquilo. Agradeceram a ajuda da jovem negra e pediram que ela ficasse onde estava. Agora os dois se aproximariam do acampamento e o plano de Eva e Moreyra seria posto em ação.

Odara concordou e sentou-se para descansar, depois ela iria até os cavalos, que ficaram atados na entrada da floresta. Ela começou a observar com curiosidade o que faziam os outros dois. No escuro, dava para notar que Moreyra usava alguma coisa para traçar riscos no rosto da neta. Quando terminou, Eva tinha, em cada bochecha, um desenho composto por três linhas retas. Uma linha ficava no meio, enquanto as outras duas partiam de uma das extremidades desta, formando alguma coisa parecida com a pata de uma ave.

̶  Com esta pintura, Yvytu, nenhuma arma dos brancos poderá ferir você, ela lhe trará proteção.

Então, o velho guarani deu uma baforada no seu petyngua, o cachimbo mágico, e soprou um pouco de fumaça na neta. Eva, muito séria, encaixou a aljava de flechas e o arco nos ombros e agarrou, com expressão confiante, a sua lança de taquara. Moreyra vasculhou a bolsa que trazia consigo, tirou de lá um pedaço de madeira entalhado em forma de jaguaretê[1]. Segurou o artefato com firmeza e olhou para Eva.

̶  Chegou a nossa hora, minha neta.

Os dois se abraçaram e mergulharam na escuridão da floresta. Odara ela ficou ali.

Eva e Moreyra atravessaram o rio Uruguai sem problemas, o barulho da correnteza soava mais alto naquela hora da noite. O som ajudou a abafar a aproximação dos dois ao acampamento dos brasileiros.

No acampamento, um grupo de bandeirantes se reunia em volta da fogueira, conversavam e passam, de mão em mão, uma garrafa de aguardente. O Diabo Velho estava entre eles.

̶  Então, senhor, quando partiremos?

O Diabo agarrou a garrafa, tomou um gole, passou a manga da camisa na boca e respondeu.

̶  Assim que amanhecer. Já descansamos bastante.

Não muito longe dali, dois bandeirantes montavam guarda.

̶  E então, Henrique, será que enriquecemos dessa vez?  ̶  Perguntou um deles.

 

̶   Depois de um trago da inseparável garrafa de aguardente, ele respondeu:

̶  Assim espero, meu amigo. Parece que esses selvagens que vivem em reduções valem mais. Ouvi que têm uns três mil nessa para onde vamos  ̶  Tomou mais um trago e entregou a garrafa para o colega.

̶  Toma aí, vou mijar  ̶  o outro recebeu a garrafa e deu um sorriso.

̶  Cuidado, nesse mato aí tem onça  ̶  E emborcou a garrafa garganta a baixo.

O homem escutava os passos do colega dentro da mata. De repente, o som da calça sendo desabotoada e do esguicho de urina. Até ali, tudo normal.

Então, de repente, lhe chamou a atenção um som que ele não esperava. Como de uma voz sendo abafada.

̶  Henrique?  ̶  Ele sussurrou, sem obter resposta. Então, faltando-lhe coragem para adentar a mata, ele correu até a fogueira onde estavam os demais bandeirantes. Estes, em princípio, não deram muito crédito à história do colega, e o Diabo Velho permitiu que apenas um deles o acompanhasse.

̶  É aqui, atrás dessa árvore. Vamos!  ̶  Os dois ingressaram na mata e encontraram o corpo do desaparecido. Antes que um deles tivesse tempo para correr e avisar os outros, uma flecha lhe alcançou, como um raio. Aquele ali, nunca mais falaria nada. O sobrevivente, com os olhos arregalados, voltou à toda velocidade para a fogueira.

Desta vez, levaram a história à sério.

̶  Acordem tudo mundo, podemos estar sob ataque  ̶  O Diabo Velho desembainhou sua espada e adentrou a mata com os homens que estavam com ele na fogueira, eram em número de seis.

Do outro lado do rio, uma Odara assustada, sabe-se lá por que ainda estava ali, escutava a movimentação no acampamento. Ela pôde escutar a voz do seu antigo patrão ecoando na noite, ainda que não pudesse discernir que palavras ele gritava.

̶  Eu sei que vocês estão aí! Mostrem-se seus animais! – O líder dos bandeirantes encabeçava a coluna no interior da floresta.

A resposta veio em forma de flecha, farfalhando as folhas das árvores e indo terminar no pescoço do Diabo Velho.

̶  Acertaram o patrão! Acertaram nosso senhor! Acudam!

Um tumulto começou entre os bandeirantes, alguns, paralisados, olhavam para todos os lados, outros tentavam acudir seu patrão, que tinha dificuldades para respirar e agonizava com a seta atravessada na garganta. Dois deles, assustados, tentavam voltar para o acampamento. Estes não conseguiram sair da mata fechada. Uma sombra viva salta de entre as folhagens e cai por cima deles. Era uma enorme onça-pintada. Antes que o animal tocasse no chão, já tinha atingido a cabeça do primeiro bandeirante com uma patada, aquele não voltaria para junto dos seus. Quanto ao segundo, não teve tempo de usar seu mosquete. A mandíbula da onça se fechou sobre a sua garganta e, em instantes, ele não se movia mais. A criatura, então, retornou para a escuridão de onde havia saído.

Tomados pelo pavor, os homens iniciaram um tiroteio, às cegas. Como resposta, mais uma flecha iniciou seu caminho pela noite e encontrou o final do seu trajeto na cabeça de outro bandeirante.

Odara escutou os disparos, agora o acampamento estava muito mais agitado, tomado por um vozerio nervoso. O coração da ex-escrava parecia saltar de seu peito. Ela, então, agarrou firme o pingente de espada, presente de Jerônima, em volta do seu pescoço.

Os três homens restantes do primeiro grupo, descarregaram suas armas atirando à esmo e são atingidos por mais flechas. Só sobrou o Diabo Velho, sozinho na mata, agonizante. Mas, logo, teria companhia. A onça saiu da mata, mais uma vez, e se preparava para dar o bote final sobre o velho bandeirante, quando o estampido de um mosquete interrompeu seu avanço.  O animal voltou para o interior da floresta e uma pequena mancha de sangue, imperceptível no escuro, passou a ocupar o lugar onde ele estava. A chegada dos reforços animou o Diabo Velho que, apesar da flecha no pescoço, levantou-se e grunhiu ordens para caçar os índios escondidos no mato.

Do outro lado do rio, Odara continuava agarrada no seu pingente. Por que ela não ia embora? Essa pergunta ecoava dentro da sua cabeça. Mas não era só isso. Ela também escutava a voz de Jerônima. “Você não é uma escrava”. “Você não é uma escrava”. A mulher negra, vinda do outro lado do oceano, sentia, aos poucos, uma chama acender dentro de si.

Eva não sabia onde estava seu avô. Agora, era só ela. Bem posicionada atrás de uma árvore, ainda pode flechar mais dois homens, as tochas os tornavam alvos mais fáceis. Mas ela teve que deixar sua posição e correr em direção ao rio, as balas zuniam em seus ouvidos. Um dos seus perseguidores se aproximou o bastante da sua lança, a ponto de ser atingido. Já com os pés na água, Eva, então, se preparou para desferir mais uma flechada, talvez a última, antes de ser morta. Quando a primeira tocha saiu de trás das folhagens, ela liberou a sua flecha.

Em princípio, não entendeu do que se tratava, se era alguma magia surpresa do seu avô, mas não foi apenas a sua flecha que atingiu os bandeirantes, foram várias. Então, ela descobriu o que havia acontecido. Os gritos chamaram a sua atenção e ela olhou para trás. Do outro lado do rio estava o povo da Redução. Aqueles poucos velhos e mulheres que não eram considerados aptos para guerreiros e estavam prontos para fugir. Não fugiram, estavam ali. Empunhavam seus arcos e bradavam seus gritos de guerra. Eva ganhara um novo ânimo.

Alguns deles, começavam a atravessar o rio com suas canoas, quando os mosquetes dos bandeirantes voltaram a ressoar, fazendo-os cair de suas embarcações.

“Você não é uma escrava”. “Você não é uma escrava”. A chegada do povo da Redução foi como um combustível para a chama que ardia dentro de Odara.

̶  Eu sei quem eu sou! Eu sei quem eu sou!

Os gritos da mulher chamaram a atenção dos guaranis mais próximos. Ao mesmo tempo, uma lufada de vento os empurrou, derrubando-os.

Eva preparava a última flecha da sua aljava quando um raio desceu do céu e explodiu parte da vegetação à sua frente, onde estavam os bandeirantes. Ela caiu sentada, o barulho a havia atordoado. Enquanto se recobrava, viu o Diabo Velho, que segurava seu pescoço banhado em sangue. E viu que ele apontava e gritava de forma ameaçadora para o alto. Foi quando uma tempestade teve início.

̶  Eu sou Iansã! A rainha do vento e da tempestade!  ̶  Os gritos de Odara se misturavam aos trovões e aos raios.

O céu noturno começava a receber colorações alaranjadas quando a tempestade parecia se acalmar. Os guaranis já haviam, quase todos, atravessado o rio. Os bandeirantes, com a pólvora molhada, preferiam, em sua maioria fugir. Alguns ficaram para proteger seu chefe, que gritava e balançava sua espada, ameaçando seus inimigos.

Bandeirantes e guaranis entraram em luta corporal. Os habitantes da Redução compensaram sua pretensa fraqueza com uma vontade muito maior que a dos seus oponentes. Em pouco tempo, só o Diabo Velho estava em pé.

̶  Índia maldita! Você vai morrer!  ̶  Só o ódio o animava. Tossindo e engasgando, suas ofensas se dirigiam a Eva, que o observava, acompanhada do seu povo. Ela, então, empunhou sua lança e se preparou para atravessá-lo, quando, de repente, mais uma flecha foi se alojar próximo à outra que o senhor de escravos trazia na garganta.

Todos se voltaram para trás e viram a jovem negra segurando um arco, ofegante. Ela também atravessara o rio.

[1] Onça-pintada, em guarani.

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YVY – Mistérios da Terra/Capítulo 13

YVY

YVY

Eva observava aquela jovem que dormia no chão, sobre um couro de boi, no interior do cotiguaçu. Sua pele negra e seus cabelos enrolados eram familiares. A garota havia sido colocada ali há algumas horas e já começava a se mexer, parecia prestes a despertar.

Em pé, ao lado dela, estavam Eva, o velho Moreyra e o padre Antônio. Eva se agachou, segurava um copo de água em uma mão, com a outra, segurou a nunca da jovem.

̶  Tudo bem?  ̶   Eva falou em espanhol, ao mesmo tempo que gesticulava oferecendo a água.

A garota negra deixou que Eva colocasse o copo em sua boca e sorveu o líquido do seu interior. Depois de satisfeita, fez um gesto agradecido com a cabeça e se apoiou em um cotovelo. De repente, ela se pôs inquieta. Olhava ao redor e tateava pelo corpo.

̶  É isso que procura?  ̶  Eva tinha na mão o pingente em forma de espada. A garota fez um gesto afirmativo com a cabeça e esticou o braço para pegar o objeto. Eva fechou a mão e perguntou em português.

̶  Como você se chama?

Odara, então, revelou seu nome, ou, ao menos, como ela era chamada. Contou como fugiu do acampamento do Diabo Velho e sobre sua jornada pela floresta, a noite inteira, até ali.

Depois do relato, os três ouvintes se entreolharam. Eva devolveu o pingente à jovem e voltou-se para o padre.

̶  Então, acredita em nós, agora? Ela confirma minha visão. Esses brasileiros estão aqui para nos atacar.

Padre Antônio balançou a cabeça, como se concordasse com a antiga pupila. Então, deparou-se com o olhar fixo do velho Moreyra. A ideia de que toda a história que o feiticeiro lhe contara pudesse fazer sentido lhe causava repulsa. Então, na tentativa de expulsar esses pensamentos, se dirigiu até a porta e saiu.

̶  O que acha que ele vai fazer, minha neta?  ̶  Quis saber o velho Moreyra.

̶  Acho que vai reunir o cabildo[1]. Agora, só nos resta esperar.

Eva e Moreyra sentaram-se do lado de fora do cotiguaçu, estava um dia quente. Dentro da construção, Odara voltava a dormir.

̶  Essa garota de pele negra estava nas minhas visões, meu avô. O que isso significa?  ̶  Moreyra ouviu a neta e ficou pensativo. Então colocou sua mão sobre a dela, apoiada no banco em que sentavam.

̶  Você vai conduzir nosso povo ao Yvy Maraêy, minha neta. Deve refletir sobre os sinais que aparecem para você.

Os dois não falaram mais, até que, depois de algum tempo, um garoto se aproximou de avô e neta, com um recado. Os caciques reunidos no cabildo gostariam de ver os dois parentes que trouxeram tão importante notícia.

Assim, Eva e Moreyra entraram no salão, onde, sentados em círculo, os membros do cabildo se reuniam. Ao avistarem os dois, eles se levantaram, eram em número de oito. Um guarani, que aparentava ser muito mais velho que todos, inclusive que Moreyra, tomou a palavra.

̶  Irmãos, aproximem-se, queremos ouvir vocês.

Padre Antônio, que não havia se levantado junto com os demais, o fez, então, para dar espaço aos recém-chegados.

̶  É bom ver você, Nhee Porã e saber que está vivo. Você ainda era um jovem quando estive na sua aldeia, antes daquela praga, há muito tempo. Meu coração ficou pesado quando você não quis vir morar aqui conosco.  ̶ Os outros participantes da reunião balançavam as cabeças, concordando com as palavras ditas. O velho, então, voltou-se para Eva.

̶ E você, pequena. A sua partida também nos trouxe tristeza. Você era a última do povo de Nhee Porã. Como um ramo que nasce depois de uma floresta queimada  ̶  Avô e neta receberam as palavras do ancião em silêncio, e ele continuou  ̶  Vivemos com os homens de vestido preto há muito tempo. Mas nunca esquecemos das visões que os sonhos nos trazem. Queremos dizer que acreditamos em você, Eva  ̶  Neta e avô se entreolham satisfeitos  ̶  Mas estamos sem nossos melhores guerreiros, como vamos lutar?

O padre Antônio, imóvel, apenas observava. Sentada ao lado dele, Eva começou a falar.

̶  Meus parentes, agora tenho meu nome guarani, Yvytu Eté. E minha principal preocupação é com a vida do meu povo. Quem traz os brasileiros para nos escravizar é o Anhá! Não espero que vocês lutem agora, meu avô e eu estamos pedindo para vocês irem para longe daqui.

A decisão foi tomada, depois de uma discussão onde cada cacique se posicionou. Padre Antônio não demonstrava concordância, mas aceitou, diante da sua posição de inferioridade. Organizariam carroças, carros-de-boi, mulas, o que quer que fosse, e partiriam em direção ao leste. Eva e o velho Moreyra tinham outro plano para si próprios.

O sol recém ultrapassava seu ponto mais alto no céu, quando os dois foram despertar a jovem chamada Odara. Deram-lhe mais água e esperaram que se recompusesse.

̶  Precisamos da sua ajuda. Queremos que nos leve até onde estão os brasileiros  ̶  Falou Eva. Ao ver que a garota, pensativa, demorava a responder, argumentou:

̶  É hora de retribuir essas pessoas que lhe deram um abrigo quando você precisou.

̶  Sim, eu concordo  ̶  respondeu Odara  ̶  Deixei uma amiga na floresta, quero ver se, ao menos, lhe dou um enterro decente.

[1] Cabildo – Instância política-administrativa da redução, espécie de prefeitura colegiada, que reunia caciques e jesuítas.

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YVY – Mistérios da Terra / Capítulo 12

A Redução parecia tão pequena lá do alto da colina. Eva e o avô levaram quatro dias para chegar até ali. Ela vestia as mesmas roupas de quando deixara o convívio no mundo cristão, o chiripa e as botas de garrão de potro com esporas. Próprias para montaria. Mas ela não pôde montar o tempo todo durante a viagem. Os dois tinham apenas um cavalo. Em boa parte do trajeto, ela puxou o animal pelas rédeas. Montado nele, ia o velho Moreyra. Ao avistar a redução, a ansiedade tomou de conta de Eva e o cavalo teve que carregar um peso extra na parte final da jornada.

O padre Antônio havia acabado há pouco suas orações da manhã, se preparava para aquecer água no fogão de barro quando um menino veio chamá-lo. Ainda segurando a chaleira, ele deixou a cozinha coletiva da redução e foi em direção ao pátio. Ao ver os recém-chegados, foi assaltado com um misto de sentimentos, desde surpresa, ressentimento, até alegria.

Passada a torrente de lembranças de todo tipo, inspirou fundo e sorriu, soltando o ar pelo nariz.

̶ Mais duas ovelhas para meu rebanho?

Avô e neta, em pé, lado a lado, se entreolharam.

̶  Acho que não. Vamos entrando, então  ̶  convidou o sacerdote.

O trio conversava, sentado em roda, enquanto a água da chaleira esquentava. Falaram sobre o inverno, que havia sido muito chuvoso. O padre comentou sobre a chegada de novos moradores à redução, oriundos de uma aldeia próxima dali. Avô e neta contaram sobre as dificuldades da viagem.

Quando a chaleira começou a expelir vapor e a chiar, o padre se levantou e a tirou de cima da chapa de ferro. Encheu uma cuia de erva-mate com a água e tomou um gole, cuspindo, logo em seguida, o líquido que acabara de sorver. Encheu mais uma vez a cuia e voltou a sentar-se próximo aos recém-chegados.

Enquanto o velho sacerdote tomava o Ka’a, reparava na velhice de Moreyra. Tão velho quanto ele mesmo. Como pôde ter vivido tantos anos sozinho na mata? Nunca entenderia essas pessoas sem Deus, pensou. Mas, suas reflexões foram interrompidas.

̶ Padre, temos uma coisa muito importante para dizer. ̶  Eva anunciou  ̶  A Redução corre perigo!

O jesuíta olha para a garota que já foi como sua filha. Volta seu olhar para Moreyra e, então, pergunta.

̶  E que perigo seria esse?

Eva estava pronta para responder, mas o velho guarani tocou em seu ombro, pedindo a palavra.

̶  Padre Antônio. O senhor deve se lembrar do dia em que deixei minha neta com você. Não?

Aquilo já fazia vinte anos, mas o padre Antônio lembrava como se fosse ontem. Fez um gesto afirmativo com a cabeça.

̶  Então, já deve saber de que perigo estamos falando.  ̶  Concluiu.

Antônio agarrou a chaleira mais uma vez, encheu a cuia e a passou para Eva. Então, respirou fundo e coçou o queixo.

̶  Moreyra, você está falando daquela profecia sua sobre Eva ter que ficar comigo para que eu a protegesse do seu… como é mesmo…Anhá?

̶  Meu avô se chama Nhee Porã, padre. E eu, agora, sou Yvytu Ete!  ­̶  Afirmou a garota guarani, com convicção.  ̶  Tive uma visão. E, nessa visão, um exército de paulistas invadia e destruía a Redução.

Tomando a cuia de volta, Antôno repetiu o processo de colocação da água quente e a retornou, agora, para Moreyra.

̶  Deixe-me ver. Então, eu deveria organizar toda a gente que vive aqui para uma retirada e abandonar nossas casas, nosso trabalho, nossa igreja!  ̶  Nessa última palavra o padre levantou o tom de voz, para, então, diminuí-lo logo em seguida.  ̶  Tudo, por causa de uma superstição de selvagens!  ̶  Nesse final, ele levantou a voz uma vez mais.

O ambiente silencia por alguns instantes. Então, Moreyra se vira para sua neta.

̶  Entendeu, Yvytu? A palavra não significa nada para os juruás.

Eva se voltou para o sacerdote.

̶  Padre Antônio, o senhor sempre disse que eu era especial. Eu não entendia o porquê. Mas agora eu sei, agora eu me sinto especial!

O padre cerrou o cenho e seus olhos miraram o vazio durante um tempo. Quando pegou fôlego para falar uma voz se ouviu do lado de fora.

̶  Padre Antônio! Padre Antônio!  ̶ O homem foi até a porta para ver o que acontecia. Eram alguns moradores. Eles seguravam uma mulher negra prestes a desfalecer. Suas vestes estavam esfarrapadas e sujas. Quem seria ela? O padre pensou.

Capítulo 13