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Página de quadrinhos.
O pampa se enche com a alegria de Eva.

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página 3 de yvytu
Eva, no campo, fazendo o que mais gosta.

Os indígenas e a tecnologia

Por Rafael

“Índio com telefone”? Quantas vezes já não ouvimos alguém fazer uma pergunta semelhante a essa ao ver algum representante dos povos indígenas utilizando uma tecnologia moderna qualquer? Como se alguém, não importa quem seja, tivesse sua identidade apagada ao usar algum artefato que não pertença, originalmente, a sua cultura. Ninguém sofre essa acusação mais do que os povos indígenas. Isso é uma coisa engraçada, pois nunca vi alguém lançar o mesmo questionamento a um brasileiro de origem alemã que estivesse tomando chimarrão, por exemplo. Bom, vamos conversar um pouco sobre isso neste texto.

Durante minhas pesquisas para elaborar o universo narrativo de YVY, descobri que o mundo da tecnologia e das redes sociais está, felizmente, sendo cada vez mais ocupado pelos povos indígenas, do Brasil e do mundo.  Eles encontraram, nesse ambiente, um meio para divulgar e valorizar suas identidades enquanto povos originários. Temos canais do youtube, páginas de facebook, blogs, perfis de instagram, entre outros, alimentados por representantes dos mais diferentes grupos, com as mais diversas finalidades. São muitos os jovens que, individualmente, usam essas mídias para exporem sua cultura, seu modo de vida, seus gostos e suas lutas. Mas, também, temos organizações indígenas, grupos musicais e artísticos de todos os gêneros.

A geógrafa Doreen Massey, em seu livro ”Pelo Espaço”, analisa a forma capitalista de ver o mundo, desde os seus inícios nas chamadas grandes navegações. Para os europeus, o espaço terrestre, vamos dizer assim, é apenas uma superfície a ser conquistada. O encontro com os povos americanos, ao se depararem com este continente, foi apenas um acidente de percurso. Ou seja, os povos indígenas seriam apenas um acontecimento fortuito na trajetória triunfante da colonização. Não se tratariam de povos com sua própria história e cultura a ser considerada e respeitada. Daí vem uma distinção muito comum que é feita por muitas pessoas: os “povos adiantados” e os “povos atrasados”. Ou seja, é realizada uma distinção temporal entre povos diferentes que compartilham o mesmo espaço, o planeta Terra, no caso.  É uma distinção que não respeita a diversidade.

Porém, ao se apropriarem da tecnologia elaborada pela sociedade capitalista, os povos indígenas dão sinal de que não estão confortáveis dentro desse papel imposto a eles pelo projeto colonizador. Não querem ser o “acidente” da história de outros, da narrativa de outros. Mostram que almejam o papel de protagonistas de suas próprias histórias. Nesse contexto, trago alguns exemplos, entre muitos, dessa apropriação subversiva da tecnologia pelos povos originários.

Talvez, um dos pioneiros, salvo engano, seja o grupo de rap Bro MCs. Na ativa desde 2009, o grupo foi formado por jovens da etnia Guarani Kaiowá, do interior do Mato Grosso do Sul. Cantando em português e guarani, denunciam as mazelas que se abatem sobre seu povo, desde a violência do agronegócio e a discriminação, até o alcoolismo e drogadição em suas aldeias. Já lançaram diversos clipes no youtube. Como Eju Orendive, Koangagua e Nhe’ê Mbaratê.

bro mcs

Essa apropriação do rap, não parece ser por acaso. Como todos sabem, esse estilo musical oriundo dos guetos estadunidenses ganhou projeção mundial e é usado como instrumento de expressão para os mais diversos povos oprimidos do mundo, como a população de origem árabe da França e os palestinos que vivem em territórios ocupados pelo estado de Israel. Nada mais normal que os povos indígenas também se identificassem com esse estilo. É o caso dos outros dois exemplos que trago aqui.

Tendo lançado, recentemente, o clipe Xondaro Ka’aguy Reguá, o jovem Kunumi MC não começou agora sua trajetória de luta em favor de seu povo. Pertencente à etnia Guarani (não descobri de qual ramo, na minha pesquisa), Werá Jeguaka Mirim, como se chama o rapper, é aquele garoto indígena que, na abertura da copa do mundo do Brasil, quebrou o roteiro e estendeu um cartaz onde se lia “demarcação já”. Além do lançamento recente, Kunumi postou outros clipes na plataforma youtube: O Kunumi chegou e Somos Guerreiros Daqui, entre outros.

kunumi mc

Outro representante indígena nessa luta é a rapper e atriz Katu, de origem Boe Bororo, um povo do Brasil central. Tendo angariado milhares de seguidores na plataforma instagram, Katu, criada na periferia da cidade de São Paulo, usa esse espaço para falar de como ela busca se aproximar de suas origens indígenas, denunciando a violência histórica e sistêmica que a levou a se separar delas.  Identificada, também, com a comunidade lgbt, Katu, além de cantar, atua como modelo fotográfica e atriz, tendo participado do último de clipe da cantora Iza, chamado Let Me Be The One.

katu

Mas a apropriação indígena das tecnologias atuais vai além do rap. Trago, também, o exemplo do perfil de instagram, Literatura Indígena Brasileira. Administrado pela jovem de origem Pataxó, Carina Oliveira. Nele, temos dicas de leitura e entrevistas com escritores oriundos dos mais diversos povos indígenas do Brasil. São contadores e contadoras de histórias, pensadores e pensadoras, poetas e poetisas que, entre outras coisas, expressam a cultura de seus povos, sua visão de mundo e seus desafios para sobreviver na excludente sociedade brasileira. Carina já entrevistou, em lives, nomes consagrados da área como Daniel Munduruku e Ailton Krenak.

literatura indígena brasileira

Para encerrar a lista de exemplos, trago o perfil Índio Meme, também da plataforma instagram. Aqui, vemos a apropriação da novíssima linguagem dos memes pelos povos indígenas. Nesse perfil, podemos acompanhar postagens em tom mais cômico, procurando expressar costumes das aldeias, comparações engraçadas entre a cultura indígena e a dos brancos e, em alguns momentos, postagens em tom de denúncia, ainda que de forma cômica, dos problemas que afetam suas comunidades.

indio meme

Concluo, repetindo que apresentei apenas alguns exemplos. Nas redes sociais, encontramos muitos outros, não só do Brasil, mas também do mundo. Acompanhar, curtir, compartilhar, valorizar essas formas de expressão, é o mínimo que todos os brasileiros podem fazer para compensar os séculos de agressões que esses povos sofreram e continuam sofrendo. Eles parecem estar se saindo bem com a tecnologia da sociedade capitalista. Poderíamos, os não-indígenas, nos sair tão bem na sociedade indígena?

Conheça meu livro: Yvytu e o Palavra Bonita.

YVY-Mistérios da Terra/Capítulo 15 – final

                                                 

̶  Yvytu! Achamos o velho Nhee Porã!  ̶ As luzes do dia já se faziam presente sobre o rio Uruguai, e Eva e Odara caminhavam juntas entre os destroços da batalha, quando ouviram o aviso. Era um grupo de guaranis que estavam no interior da mata procurando sobreviventes. Ela correu depressa para o local. Encontrou o avô caído, de barriga para cima. Um ferimento de bala no lado direito do tórax vertia sangue.

Eva se abaixou e, com cuidado, ergueu o velho Moreyra pelos ombros. O pescoço dele não acompanhou o movimento do corpo, pendendo para trás. Ela aconchegou a cabeça do avô em seu peito. Tudo era silêncio na mata. O Palavra Bonita havia se calado para sempre.

Então, alguém se aproximou de Eva, por trás, tocando-lhe o ombro. Era o padre Antônio.

̶  O senhor aqui, padre?  ̶  Eva tinha a voz um pouco embargada.

̶  Claro, minha filha. Fiquei de longe, rezando por você. Como eu já disse, uma vez, você é especial.

Outros guaranis se aproximaram deles e carregaram o corpo do velho Moreyra, o Nhee Porã, para uma canoa. Todos voltariam para a Redução, onde, ao que tudo indica, teria paz por mais algum tempo.

Em meio aos preparativos, Eva notou Odara, à beira do rio, de braços cruzados. A jovem de pele negra tinha um olhar vago, fixo na água corrente, e sorriu, um sorriso afetuoso, quando se voltou para a jovem de pele vermelha que se aproximava dela.

̶  Então, você já sabe o que vai fazer?  ̶  Eva devolvia o sorriso.

̶  Não sei, mas gostaria de voltar para o lugar de onde vim, de onde me arrancaram.

A guarani se aproximou da ex-escreva, tocando-lhe um dos ombros.

­ ̶  Gostaria de ajudar, se eu pudesse  ̶  Odara, apenas sorriu, mais uma vez.

̶  Sabe  ̶   Eva continuou  ̶  preciso acompanhar meu povo ao Yvy Maraêy. A terra sem males.

Odara ficou pensativa por uns instantes, com os olhos imersos na correnteza do rio. Então, perguntou.

̶  E onde fica isso, essa terra sem males?

̶  Não sei, mas meu avô me ensinou que fica em algum lugar à leste. Do outro lado, de lá, da grande água.

Enquanto as duas conversavam, canoas iam cruzando o rio Uruguai, algumas pessoas abanavam para Eva. A jovem guarani havia conquistado uma posição importante entre seu povo.  Odara notava isso, e se voltou para sua nova amiga.

̶  Você disse do outro lado da grande água? Engraçado, é de lá que eu vim.

Capítulo 1

 

 

YVY – Mistérios da Terra / Capítulo 12

A Redução parecia tão pequena lá do alto da colina. Eva e o avô levaram quatro dias para chegar até ali. Ela vestia as mesmas roupas de quando deixara o convívio no mundo cristão, o chiripa e as botas de garrão de potro com esporas. Próprias para montaria. Mas ela não pôde montar o tempo todo durante a viagem. Os dois tinham apenas um cavalo. Em boa parte do trajeto, ela puxou o animal pelas rédeas. Montado nele, ia o velho Moreyra. Ao avistar a redução, a ansiedade tomou de conta de Eva e o cavalo teve que carregar um peso extra na parte final da jornada.

O padre Antônio havia acabado há pouco suas orações da manhã, se preparava para aquecer água no fogão de barro quando um menino veio chamá-lo. Ainda segurando a chaleira, ele deixou a cozinha coletiva da redução e foi em direção ao pátio. Ao ver os recém-chegados, foi assaltado com um misto de sentimentos, desde surpresa, ressentimento, até alegria.

Passada a torrente de lembranças de todo tipo, inspirou fundo e sorriu, soltando o ar pelo nariz.

̶ Mais duas ovelhas para meu rebanho?

Avô e neta, em pé, lado a lado, se entreolharam.

̶  Acho que não. Vamos entrando, então  ̶  convidou o sacerdote.

O trio conversava, sentado em roda, enquanto a água da chaleira esquentava. Falaram sobre o inverno, que havia sido muito chuvoso. O padre comentou sobre a chegada de novos moradores à redução, oriundos de uma aldeia próxima dali. Avô e neta contaram sobre as dificuldades da viagem.

Quando a chaleira começou a expelir vapor e a chiar, o padre se levantou e a tirou de cima da chapa de ferro. Encheu uma cuia de erva-mate com a água e tomou um gole, cuspindo, logo em seguida, o líquido que acabara de sorver. Encheu mais uma vez a cuia e voltou a sentar-se próximo aos recém-chegados.

Enquanto o velho sacerdote tomava o Ka’a, reparava na velhice de Moreyra. Tão velho quanto ele mesmo. Como pôde ter vivido tantos anos sozinho na mata? Nunca entenderia essas pessoas sem Deus, pensou. Mas, suas reflexões foram interrompidas.

̶ Padre, temos uma coisa muito importante para dizer. ̶  Eva anunciou  ̶  A Redução corre perigo!

O jesuíta olha para a garota que já foi como sua filha. Volta seu olhar para Moreyra e, então, pergunta.

̶  E que perigo seria esse?

Eva estava pronta para responder, mas o velho guarani tocou em seu ombro, pedindo a palavra.

̶  Padre Antônio. O senhor deve se lembrar do dia em que deixei minha neta com você. Não?

Aquilo já fazia vinte anos, mas o padre Antônio lembrava como se fosse ontem. Fez um gesto afirmativo com a cabeça.

̶  Então, já deve saber de que perigo estamos falando.  ̶  Concluiu.

Antônio agarrou a chaleira mais uma vez, encheu a cuia e a passou para Eva. Então, respirou fundo e coçou o queixo.

̶  Moreyra, você está falando daquela profecia sua sobre Eva ter que ficar comigo para que eu a protegesse do seu… como é mesmo…Anhá?

̶  Meu avô se chama Nhee Porã, padre. E eu, agora, sou Yvytu Ete!  ­̶  Afirmou a garota guarani, com convicção.  ̶  Tive uma visão. E, nessa visão, um exército de paulistas invadia e destruía a Redução.

Tomando a cuia de volta, Antôno repetiu o processo de colocação da água quente e a retornou, agora, para Moreyra.

̶  Deixe-me ver. Então, eu deveria organizar toda a gente que vive aqui para uma retirada e abandonar nossas casas, nosso trabalho, nossa igreja!  ̶  Nessa última palavra o padre levantou o tom de voz, para, então, diminuí-lo logo em seguida.  ̶  Tudo, por causa de uma superstição de selvagens!  ̶  Nesse final, ele levantou a voz uma vez mais.

O ambiente silencia por alguns instantes. Então, Moreyra se vira para sua neta.

̶  Entendeu, Yvytu? A palavra não significa nada para os juruás.

Eva se voltou para o sacerdote.

̶  Padre Antônio, o senhor sempre disse que eu era especial. Eu não entendia o porquê. Mas agora eu sei, agora eu me sinto especial!

O padre cerrou o cenho e seus olhos miraram o vazio durante um tempo. Quando pegou fôlego para falar uma voz se ouviu do lado de fora.

̶  Padre Antônio! Padre Antônio!  ̶ O homem foi até a porta para ver o que acontecia. Eram alguns moradores. Eles seguravam uma mulher negra prestes a desfalecer. Suas vestes estavam esfarrapadas e sujas. Quem seria ela? O padre pensou.

Capítulo 13

 

YVY – Mistérios da Terra/Capítulo 11

Mulher negra

A longa coluna formada por carroças, carros de boi, mulas de carga e homens à pé e à cavalo partiu da fazenda de Raposo Velho há um mês. O homem conhecido como Diabo Velho encabeçava a marcha, montado no seu cavalo branco. Haviam chegado ao topo do imenso planalto no interior do continente. A viagem seguia, em meio a uma vasta floresta de pinheiros, em direção ao sul.

Odara estava fascinada com aquelas árvores. Eram muito altas, com os galhos encurvados para cima, bonitas de se ver. O problema era suas folhas secas pelo chão, eram duras e pontiagudas. Para quem, como Odara, andava descalço, era como pisar em pontas de facas.

No começo, quando soube que teria que acompanhar o patrão até o sul da colônia, ficou apreensiva, temendo o que pudesse acontecer no caminho. Mas, ao fim, se sentiu um pouco mais livre do que fechada na casa grande. Ao menos, poderia conhecer paisagens novas.

Ao seu lado, ia sempre Jerônima, sua companheira desde o embarque no navio negreiro. Lhe ajudava com a preparação da comida. Faziam ensopados, feijão com carne seca, pirão de milho, de mandioca. Para preparar as refeições, usavam os animais que o patrão mandou levar na viagem. Mas, às vezes, acontecia de um homem trazer alguma caça, abatida no meio do caminho. Cozinharam bugios, quatis, gambás, jacus, perdizes e muitos outros animais que Odara não conhecia.

Depois de muito tempo viajando, tanto que Odara não podia contar, ou não estava interessada nisso, pararam nas margens de um grande rio. Lhe disseram que o rio se chamava Uruguai. Ali, o Diabo Velho mandou montar acampamento.

̶  Negra, água!  ̶  Odara ouviu, agarrou as bolsas de couro de cabra e foi para o rio, Jerônima a acompanhou.

Chegando lá, as duas se agacharam para encher as bolsas. Quando a sua já estava bem cheia, Odara se levantou, pronta para ir embora. Jerônima permaneceu um pouco mais de tempo agachada.

̶  E então, vamos embora?  ̶  Disse Odara.

Jerônima olhou para a companheira, mas continuou na mesma posição. Então, voltou seu olhar para a outra margem do rio e suspirou.

̶  Você não gostaria de lembrar?

Odara estalou a língua, demonstrando impaciência.

̶   Já lhe disse que não quero lembrar nada! Essa é minha vida agora, eu sou uma escrava!

̶  Mas, e se você nem sempre tivesse sido uma escrava?

Odara não respondeu, abaixou a cabeça pensativa. Depois de um instante, fez um gesto, pedindo que a companheira se apressasse. Jerônima levantou-se com sua bolsa cheia d’água e voltaram para o local onde a coluna montava acampamento.

À noite, Odara se deitou embaixo de uma carroça, sobre uma esteira de palha trançada. Passara o dia fazendo comida e servindo aos homens. As pálpebras, pesadas, fecharam-se com facilidade. Mas não permaneceram assim por muito tempo.

No começo, ela pensou que aqueles sussurros eram parte de um sonho. Porém, as mãos que sacudiram seus ombros a convenceram do contrário. No escuro, ela reconheceu o rosto redondo de Jerônima.

̶  Odara, acorde. Precisamos fugir.

Fugir para onde? Ela quis perguntar. Não conheciam nada, nem ninguém naquele lugar. Quando escutou o som de vozes alteradas pelo álcool, mudou de ideia. Um frio percorreu seu corpo e seu instinto falou mais alto. Decidiu seguir a amiga.

̶  Negrinhaaaa! Cadê você? Tenho algo aqui que você vai gostar!

Era um grupo de homens que fazia parte da coluna liderada pelo Diabo Velho. Conhecidos como bandeirantes. Quando chegaram ao local onde Odara dormia, não a encontraram.

̶  Seus porcos! Eu disse para fazerem silêncio.  ̶  Repreendeu um deles.

Os homens a procuraram em volta, nas outras carroças e barracas. Sem sucesso. Enfim, deduziram que ela pudesse ter aproveitado a escuridão para escapar. Determinados a encontrá-la, buscaram os cães. Os animais esfregaram os focinhos na esteira que servia de cama para Odara. Então, um deles, farejando ao redor, encontrou o rastro da fugitiva. Todos se precipitaram mata adentro, em direção ao rio.

Odara e Jerônima tinham uma boa vantagem em relação aos bandeirantes, mas corriam de forma desajeitada pela floresta. Tropeçavam em raízes, empurravam galhos, pulavam sobre troncos caídos. Só as estrelas e a lua quebravam a escuridão. Odara lembrava da vez em que vira os homens do patrão violentarem uma outra negra da fazenda. Foi quando ela ia lavar roupa no riacho. De repente, enquanto caminhava, ouviu gemidos abafados de desespero e movimento nas folhagens. Ela se esgueirou para descobrir do que se tratava. As lembranças do que ela vira naquele dia, lhe davam mais ânimo para a fuga.

As duas já estavam se aproximando do meio do rio, quando os homens chegaram à margem. Odara acompanhava a amiga com um nado desajeitado, que ela nem ao menos sabia que era capaz de realizar. Ouviu os gritos, os xingamentos e os latidos e, logo depois, as balas que começaram a zunir nos seus ouvidos. Ela engoliu água e cuspia, enchia os pulmões com todo o ar que podia e continuava movimentando pernas e braços, atrapalhada pelos panos que vestia. Aquilo parecia interminável. Enfim, começou a sentir o chão firme sob os pés e se apressou mais ainda.

Quando saíram da água, as duas arfavam. Odara olhava para Jerônima como quem diz, “e agora?”. A amiga não teve tempo de responder coisa alguma. Escutaram mais uma bala assobiar na escuridão e Jerônima caiu. Desesperada, Odara a abraçou e tentou erguê-la, uma das suas mãos sentiu que não era só a umidade da água que molhava as costas da amiga. Arrastaram-se para dentro da mata.

Do outro lado, os bandeirantes tentavam avaliar a situação através da escuridão.

̶  Deixem isso! Não vou entrar nesse rio por causa de uma negra. Vai virar comida de onça, agora.

Após tropeçarem por mais alguns metros, as duas se sentiram seguras o bastante para descansar. Odara escorou a amiga embaixo de uma árvore de raízes grossas e sentou-se ao seu lado. Jerônima tinha o pingente de espada no pescoço. Arrancou ele e o ofereceu para Odara.

̶  Tome, minha querida. Lembre-se, você não é uma escrava.

Odara agarrou o pingente e encostou a cabeça no ombro da amiga. Quando o dia amanheceu, apenas Odara se acordou. Sacudiu Jerônima e percebeu, depois de um tempo, que estaria sozinha dali para frente. Observou em volta, como se guardasse os detalhes daquele lugar. Então, olhou uma última vez para a companheira de tantas jornadas, amarrou o pingente no pescoço e começou a caminhar em direção ao sul.

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YVY-Mistérios da Terra/Capítulo 10

Eva, rebatizada Yvytu Eté, sabia da doença desconhecida que levara embora seus pais e toda a sua tribo. Sabia, também, que ela e seu avô, que a entregou ainda bebê ao padre Antônio, eram os únicos que não tinham sido tocados pela enfermidade. Ouviu de padre Antônio que esse milagre de Deus acontecera para salvá-la e para castigar o velho Moreyra. Salvá-la, pois ela era especial; castigar seu avô, pois não era um bom cristão e viveria sozinho o resto da sua vida.

Porém, naquele dia, ela conheceu outra versão para a sua história. O que a levou a refletir sobre tudo que havia aprendido até então.

̶  Aquela doença foi obra do Anhá, minha neta.

Após escutar seu avô, Eva tomou um gole do ka’a e colocou a cuia de lado. Levantou-se e foi para a entrada da cabana, o sol já começava a espalhar sua luz pela floresta.

Eva já havia aprendido sobre o Anhá, o senhor do mau. Aquele que quer desfazer tudo o que o grande pai Tupã fez. Então, um pensamento veio à sua cabeça, a doença que levou sua tribo foi obra de Deus, como disse o padre, ou do Diabo? Nesse caso, para quem o padre Antônio trabalhava?  Voltou-se para o seu avô.

̶  Mas, por que a doença não nos atacou também?

A jovem foi convidada a voltar para perto da fogueira. O velho Palavra Bonita já preparava o petyngua. Quando ela se sentou, ele lhe alcançou o cachimbo aceso. As primeiras tragadas  arderam no interior da sua boca. Aos poucos, ela foi liberando a fumaça pelo nariz.

Então, devolveu o cachimbo para seu avô e, logo depois de algumas baforadas, o tomou de volta. Esse movimento foi se repetindo e, com o tempo, o ambiente estava tomado pela fumaça branca. O velho Moreyra, as paredes de pau a pique, o telhado de taquara, tudo sumira da vista de Eva.

Ela levantou e começou a andar. Não sabia onde estava. De repente, sentiu que seu pé direito encostava em alguma coisa e olhou para baixo. Era uma pessoa deitada, inerte. Dava pra ver que era um homem do seu povo, e tinha o corpo coberto por feridas cheias de pus. Ela se assustou, voltou o olhar ao redor de si e percebeu que havia muitas pessoas na mesma situação, atiradas pelo chão.

O som de um chocalho chamou sua atenção e ergueu a cabeça para o seu lado direito. Dava para ouvir uma batida ritmada, acompanhada por um canto masculino. Aos poucos, ela foi identificando um vulto em meio à fumaça. Ela se aproximou, com calma, e pode ver com mais clareza. Era o seu avô, mais jovem, do jeito que ela o via em seus sonhos.

Se aproximou mais e pode perceber que ele carregava um bebê no colo. A expressão do homem era de angustia. Seus pés também acompanhavam o ritmo do chocalho, cada vez mais frenético. Então, faíscas luminosas atraíram a atenção de todos para o alto. Eram relâmpagos. Eva começou a se assustar com aquilo tudo. Então, quando, em meio aos clarões, enxergou o rosto de um homem branco, velho, ela caiu sentada, com as mãos protegendo o seu rosto.

O velho, do alto, encarava seu avô, que tinha o bebê no colo. Os olhos azuis do velho chispavam. Sua imensa barba grisalha e os cabelos longos revoavam em meio aos relâmpagos. Seu pavor aumentou quando, de trás da fumaça, viu mais homens brancos. Como aqueles que destruíam a Redução, no seu sonho. Começaram a cercar seu avô, devagar.

Nhee Porã não parou de cantar e tocar seu chocalho em nenhum momento. Ao contrário, fazia isso com cada vez mais vontade. Até que, com uma das mãos, ergueu o bebê bem alto. Eva percebeu que tanto os homens ao redor do seu avô, como o velho que pairava nas alturas, se assustaram e recuaram um pouco. Um vento forte começou a soprar, dispersando a névoa branca. Eva observava tudo, perplexa.

A ventania terminou de afastar a fumaça e, mais uma vez, Eva estava na praia dos seus sonhos. Mas tinha algo diferente. Entre a areia e o mar, havia uma longa paliçada, ameaçadora. O que ela estaria protegendo? O mar ou a terra? Ela não pôde refletir muito sobre isso. Percebeu que já havia voltado para o redor do fogo, junto com o velho Moreyra, que segurava o petyngua e a observava com seus olhos serenos.

̶  Meu avô. O velho de barbas brancas nos olhando lá de cima, era o Anhá?

O velho Nhee Porã balançou a cabeça.

̶  Sim, Yvytu.

̶  Ele que trouxe a doença?

̶  Na verdade, ele trouxe os juruás. Os juruás trouxeram a doença e tudo o mais que atinge nosso povo.  ̶ O avô de Eva bateu o petyngua sobre o fogo, expulsando o conteúdo do cachimbo.  ̶  O poder do meu canto não foi bastante para proteger nossa tribo, só consegui salvar a mim mesmo.  ̶  O velho abaixou a cabeça e esfregou seus olhos, que começavam a lacrimejar.  ̶  Com você foi diferente. Sobreviveu por outro motivo.

Eva enrugou a testa, como quem não estava entendendo nada.

̶  Sim, minha neta. Você sobreviveu porque é especial. Você veio ao mundo para conduzir nosso povo ao Yvy Maraêy. A Terra Sem Males, o paraíso guarani. O Anhá não podia fazer nada contra você.

Era muita informação de uma única vez, Eva sentia sua cabeça ferver. O padre Antônio sempre dizia que ela era especial. Mas, parece que não pelo motivo que ele imaginava. Ela se levantou e começou a andar pela cabana.

̶  O Anhá não podia me matar, mas podia matar nosso povo. Não é isso?

̶  Sim, minha neta. E a única barganha que consegui fazer com ele foi de entregá-la aos homens de vestido preto, em troca de deixar nosso povo em paz.

̶  Então, por isso a minha visão! Comigo fora da Redução, o acordo foi desfeito e os homens brancos estão vindo para destruir tudo.

Ela voltou a se sentar ao redor do fogo, próximo ao seu avô.

 

̶  Mas tem mais uma coisa. Onde fica o Yvy Maraêy?

̶  Não sabemos. Mas, dizem que viajando sempre para a direção do lugar onde o sol nasce, existe a grande água, o Paraguaçu. Que os juruás chamam de oceano Atlântico. O paraíso pode ficar do outro lado da água.

Assim, Eva entendeu mais um elemento recorrente nos seus sonhos, o mar.

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