A República “Comunista” Cristã dos Guaranis

A república comunista cristã dos guaranis

Em 1949, o teólogo e estudioso suíço Clovis Lugon lançou um livro polêmico: A República “Comunista” Cristã dos Guaranis. No prefácio da edição brasileira de 1968, o editor já antecipa algumas críticas à obra. Afinal, como conectar dois campos, supostamente, tão distintos? Isto é, o comunismo, enquanto uma doutrina político-científica-econômica baseada na análise da materialidade do mundo, e o cristianismo, um sistema de crenças fundamentado na fé em uma força sobrenatural. Teoricamente, seria difícil essas duas dimensões se expressarem em uma mesma experiência. Porém, a realidade, algumas vezes, escapa aos modelos estabelecidos pelos humanos.

Independentemente da coerência ou não da análise levantada pelo pesquisador suíço, sua obra faz um levantamento magnífico de diversos aspectos das antigas missões jesuítico-guarani da América do Sul. Com base em uma vasta referência bibliográfica, ele nos apresenta um curioso, encantador e rico retrato da experiência que construiu, em meio ao predatório mundo colonial, uma sociedade baseada na solidariedade e ajuda-mútua, com todos os seus limites e defeitos.

No século XVII e XVIII, o termo “Paraguai” designava uma área bem maior do que o território do atual país que leva esse nome. Naquele tempo, era conhecido por Paraguai, o vasto espaço geográfico composto pelas bacias do rio Paraguai, Paraná e Uruguai. Aí, os homens da Companhia de Jesus, os jesuítas, vindos de diversos países europeus, mas principalmente da Espanha, se embrenharam e constituíram, se quiserem chamara assim, uma verdadeira epopeia religiosa. A qual culminou numa poderosa república, organizada e populosa, autossuficiente e, ao mesmo tempo, provedora do império espanhol em tudo que ele necessitasse.

O livro começa com as dificuldades várias que tiveram os jesuítas, desde os povos hostis ao contato com o branco, passando pelos bandeirantes paulistas até os colonos espanhóis. Essa experiência, aproximava os feitos dos homens da Companhia de Jesus aos dos primeiros apóstolos do início do cristianismo. Muitos foram os casos de sacrifício pessoal que esses religiosos enfrentaram, formando um amplo panteão de mártires jesuítas.

Sabemos bem o que foi o projeto colonial, baseada na exploração da natureza e na escravidão. Também, estamos cientes do papel que o cristianismo teve nesse processo. Apesar disso, muitos foram os jesuítas que desempenharam sua função com honestidade. Quer dizer, acreditavam, sinceramente, que a evangelização era o melhor caminho para os povos indígenas, entre eles, os guaranis. De fato, a vida nas reduções acabou sendo a única alternativa para eles. As outras eram a escravidão nas mãos dos bandeirantes brasileiros, dos encomienderos espanhóis ou, simplesmente, o extermínio.

A relação entre o projeto evangelizador da Companhia de Jesus e o projeto colonial da Coroa Espanhola era complexa. Na teoria, as reduções estavam sob a proteção da Coroa. Porém, nas lonjuras do interior americano, essa “proteção” era apenas palavra vazia. Pouco o governo colonial fez para evitar ataques dos bandeirantes, que, ao serem presos, eram, até, liberados. Apesar dessas e outras dificuldades, a experiência missioneira durou cento e cinquenta anos. E forneceu diversos bens ao governo espanhol. Desde couro, algodão, erva-mate, até bens manufaturados, como móveis, relógios, instrumentos musicais e imagens sacras. Mas não só isso, as reduções jesuítico-guaranis também forneciam homens para os diversos conflitos que a Coroa espanhola tinha no continente, tanto contra Portugal, quanto contra povos indígenas não-cristianizados.

As atividades produtivas eram realizadas pelos guaranis, da indústria, agricultura, passando pelo comércio e pela administração. Aprenderam as técnicas ensinadas pelos jesuítas e foram capazes de se organizar de maneira muito superior às cidades coloniais espanholas, que circundavam a região das reduções. Que o autor chama de República Guarani. Essa força organizacional inspirava medo na Coroa Espanhola.

Os chamados “detratores” da experiência jesuítico-guarani, costumavam acusar os jesuítas de aproveitadores, afirmando que eles enriqueciam com o trabalho dos indígenas. Porém, o autor é enfático ao defender que nenhum dos missionários que participaram da República Guarani enriqueceu ou se favoreceu pessoalmente do trabalho nas reduções.

Os guaranis, por sua parte, se habituaram com a maneira dos jesuítas, que tinha algo de “paternalismo”, e demonstravam verdadeiro apreço ao trabalho coletivo nas reduções. Onde desenvolviam jornadas diárias de no máximo 6 horas, enquanto na Europa os trabalhadores eram explorados por 12 ou 16 horas em um dia. Pressionados pela Coroa, os jesuítas tentaram acostumar os guaranis ao trabalho individual, cada um em seu lote. Porém, os nativos, simplesmente, rejeitaram esse modo de organização.

Não tinham interesse em cultivar seus lotes sozinhos, apraziam-lhe mais a atividade coletiva. O interesse da Coroa era de que os indígenas pagassem impostos por cabeça, daí a ideia de que trabalhassem individualmente. Esse sempre foi um ponto de inflexão entre as reduções e a administração colonial: o pagamento de impostos. Porém, os jesuítas negociavam com o governo e acabavam comercializando seus produtos fora das reduções para levantarem o dinheiro devido para os impostos.

Além do trabalho coletivo, cada morador das reduções tinha o direito a uma quantia de bens de necessidade básica, estocados nos seus armazéns. Todos recebiam esse benefício, trabalhando na lavoura, nas oficinas ou na administração. Ou ainda, se a pessoa fosse impedida de trabalhar por velhice ou outro motivo, também recebia o necessário para viver.

O autor faz uma breve discussão com autores marxistas. Para eles, a sociedade comunista só poderia ser estabelecida sobre uma base econômica adequada. Lugon usa o exemplo das reduções e dos camponeses russos para dizer que o comunismo poderá ser realizado em qualquer base econômica, desde que tenha como princípio a solidariedade e o amor fraternal.

Enfim, para não me estender muito, o livro traz muitas discussões e muitas informações históricas a respeito da experiência de organização que jesuítas e guaranis levaram a cabo no interior da América do Sul. Uma experiência que maravilhou pensadores como o Barão de Montesquieu e Voltaire, que viam nela, a concretização da utopia de Thomas More.

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