Indígenas, os vilões da serra gaúcha

Muito ouvimos sobre a dita epopeia da imigração alemã e italiana no Rio Grande do Sul. A conquista de um ambiente inóspito e a coragem daqueles e daquelas que, apesar das adversidades, se estabeleceram aqui e prosperaram são repetidas à exaustão em eventos, livros e meios de comunicação. O local principal do estabelecimento desses imigrantes foi na chamada serra gaúcha. Mas, pouco escutamos sobre as populações que já habitavam esta região, antes da colonização, e acabaram sofrendo com as muitas transformações pelas quais seus territórios passaram.

Um vislumbre dessa realidade podemos ter na leitura de uma obra um tanto rara. Me refiro ao romance As Vítimas do Bugre. Escrito originalmente em língua alemã, este livro, de autoria do padre Matias José Gansweidt, narra a tragédia vivida pela família Versteg em meio às encostas da serra gáucha.

Sequestrada por um grupo de indígenas kaingang, apenas um membro dessa família consegue escapar, um rapaz chamado Jacó Versteg. É com base no depoimento desse sobrevivente, que Gansweidt, em 1928, escreve seu livro. O sacerdote alemão, porém, não publica seu manuscrito nesse ano. É só em 1948 que a obra será traduzida para o português e impressa.

Difícil de ser encontrado, o livro teve uma reedição em 2000, graças ao esforço de um descendente dos Versteg. Tive acesso a um desses exemplares na biblioteca pública de Farroupilha e o fotocopiei.

Com uma escrita rebuscada e arcaica, o autor começa nos apresentando a já cansada narrativa da epopeia dos colonos – alemães, no caso – em terras brasileiras. Ao mesmo tempo, também conhecemos os mocinhos/vítimas da história: a família Versteg. O casal, Lamberto e Valfrida, e os filhos, Jacó e Lucila. Que se estabeleceram no vale do Forromeco, nas encostas do chamado Morro do Diabo, entre os municípios de São Vendelino e Carlos Barbosa, por volta do ano 1858.     

Também nos é apresentado o vilão da história. Retratado como um autêntico malfeitor de telenovelas. Justiça seja feita, o autor não omite o triste passado do personagem, sendo até condescendente com o facínora que criou. Estou falando de Luís Bugre, que, quando menino, participou com um grupo de kaingangs, seu povo, de um ataque a um milharal na chamada colônia de Feliz. Tendo sofrido uma emboscada, o grupo fugiu, mas o garoto, baleado na perna, não pode acompanha-lo.

Adotado por um português que vivia entre os colonos alemães, o garoto foi batizado como Luís Antônio. Aparentemente, e o livro não explica, ninguém tentou perguntar ao pequeno kaingang se ele já não tinha um nome. Com frequência, o autor se refere ao menino como “filho das selvas” e relata a sua atribulada criação e adaptação ao mundo branco. Como era de se esperar, ele jamais se acostumou com o modo de vida dos colonos. Inclusive, ganhou um apelido, detestado por ele, Luís Bugre.

O autor não explora essa questão, mas nota-se o rancor que cresceu no garoto, durante sua estada entre os alemães. Nunca saberemos, ao certo, o que motivou o vilão da história a cometer seu crime, pois as dificuldades para acessar a versão dele são inúmeras. Aparentemente, não há fonte alguma que conte sobre os pormenores da vida do chamado Luís Bugre.

E qual foi seu crime? Segundo o relato do autor, ele teria dado a dica para um grupo de kaingangs atacar o rancho dos Versteg, quando Lamberto, o homem da casa, não estava lá. Além de levar tudo que puderam carregar, e quebrar o que não puderam, eles sequestraram a esposa, Valfrida, e as crianças, Jacó e Lucila.

Mas, não acabou por aí. Luís, grande conhecedor das matas e caminhos da região, teria se apresentado para ajudar os colonos na busca aos Versteg. Porém, ele fez o contrário disso, levando a expedição de resgate numa procura infrutífera, se perdendo em caminhos incorretos e dando tempo para os indígenas desaparecerem no interior do continente.

Um dos locais usados pelos kaingangs para abrigarem-se foi a gruta formada pelas águas da famosa Cachoeira do Salto Ventoso, no atual município de Farroupilha. Lá, hoje, tem um parque, com placas que contam um pouco dessa história.

A família de Lamberto nunca foi encontrada. Depois de anos de buscas, ele se conformou e foi viver em outra cidade, arrasado pela tragédia que se abateu sobre ele, acabou não formando outra família. Porém, muito tempo mais tarde, o garoto Jacó, já convertido em um rapaz, consegue se desvencilhar de seus captores e fugir para uma propriedade, localizada no atual município de Caxias do Sul. É ele a fonte para a escrita do livro. Porém, Jacó, que havia passado tanto tempo entre os indígenas, não teve vida fácil entre seus conterrâneos. Apelidado de “Jacó Bugre”, não conseguiu se integrar totalmente na vida da colônia.

Algumas passagens do livro, denunciam a conflituosa relação entre os imigrantes europeus e o ambiente que encontraram. Parece ter sido uma adaptação mais feita à força, através da subjugação do outro, do que do entendimento e da harmonia. Destaco o episódio em que os colonos da expedição de resgate entram no caminho de uma vara de porcos selvagens. O resultado é uma montanha de animais mortos.

Sobretudo, As Vítimas do Bugre nos falam de um conflito entre dois mundos. Um encontro de duas culturas, onde uma atropelou a outra, a sujeitou e massacrou até quase a extinção. O que restou para o lado mais fraco foi a sobrevivência, fugir, adaptar-se ao invasor, cometer ações desesperadas, enfim. Aferrar-se à vida, à existência. Essa é a história da serra gaúcha.        

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