A origem da linguagem humana

A linguagem é uma dádiva dos deuses, o que seria da humanidade sem a capacidade de se expressar? Essa é uma das ideias presentes no livro Ayvu Rapyta: textos míticos de los Mbyá-Guarani del Guairá. Trata-se de uma compilação de mitos, histórias e costumes dos mbyá-guarani, escutadas em primeira mão e transcritas pelo etnólogo paraguaio León Cadogan, que viveu entre esse povo durante muitos anos. Apenas devido à proximidade e confiança adquiridas pelo estudioso, a revelação desse conhecimento foi possível.

Considerada por alguns como o gênesis guarani, a obra teve sua primeira aparição, ainda que parcialmente, em 1953, na “Revista de Antropologia”, da USP. Mais tarde, em 1959, as histórias seriam editadas completas. Profundo conhecedor da língua e da cultura mbyá (um ramo do povo guarani, ou uma “parcialidade”, como dizem alguns), Cadogan apresenta histórias escutadas de diferentes lideranças e anciãos indígenas. Podemos conhecer mais de uma versão da mesma história, de acordo com a pessoa entrevistada, e, de forma detalhada, as diversas simbologias encontradas em cada relato.

A palavra ayvu pode significar “fala” ou “língua”, e rapyta, “fundamento” ou “origem”. Dessa forma, a obra trata da origem da linguagem humana. A palavra é uma coisa tão importante na cultura e cosmovisão mbyá que foi criada antes das pessoas, segundo sua crença.

Com diferentes nomes, Nhande Rú, Nhande Rú Tenonde ou Nhamandú, o criador, o Pai Primeiro e Original, teria feito surgir a linguagem humana, antes mesmo da criação da morada terrestre, chamada de yvyrupã. Junto com a linguagem, ele também criou o amor. Inclusive, ayvu significa linguagem e amor. Através dessas duas coisas, os ensinamentos seriam transmitidos para os seres humanos.

Cada pessoa que vem ao yvyrupã, ao mundo, é uma palavra. Ou como dizem os mitos, uma palavra-alma. É muito interessante a importância que os mbyá dão a essa questão. Cada criança que nasce, recebe a sua “palavra”, o seu nome. Mas, não no momento do nascimento, como fazemos os não-indígenas. Os nomes são escolhidos cerca de um ano depois. E cabe ao xamã da comunidade consultar os espíritos e batizar as crianças.

Os nomes derivam dos diferentes paraíso. Esses lugares espirituais são habitados pelos filhos do Pai Primeiro: Tupã (que representa a moderação, a chuva que refresca), Karaí (representante do fogo, do fervor das almas), Jakaira (responsável pela neblina da sabedoria) e Nhamandú (que é o sol, a vida). Cabe ao xamã, acender o cachimbo, espalhar a neblina e interpretar de qual dessas partes veio o espírito da criança. Só então, será batizada. Terá a sua “palavra”, ou seja, o seu lugar no cosmo.

Somos feitos de palavras, afinal de contas. Não somos? Vivemos, muitos de nós, procurando algo que nos defina. Ás vezes, de tanto nos chamarem de “feio”, “bonito”, “inteligente”, “burro”, “bandido”, “legal”, “lixo”, “senhor” ou “senhora”, acabamos nos subjetivando dessa forma e, assim, entendemos nosso papel no mundo. Essa discussão é muito comum na pedagogia e na psicologia.

Patrões quando querem fazer parecer que se importam com seus funcionários, passam a chamá-los de “colaboradores”. Não é verdade? É porque as palavras produzem sentidos e influenciam comportamentos. Assim, os mbyá procedem. Quem já teve a oportunidade de conhecer esse povo, nas ruas de alguma cidade ou visitando alguma comunidade, pode perceber a maneira com que, geralmente, se tratam uns aos outros e a nós. Dificilmente, testemunhamos algum levantamento de voz ou alguma palavra ríspida. Além disso, são excelentes ouvintes, nunca interrompem uma pessoa enquanto ela estiver falando. São, de modo geral, pessoas muito espiritualizadas, seguidoras de sua religião e do seu pai Nhande Rú.

O livro traz, também, os mandamentos e códigos de conduta que os mbyá devem seguir, as rezas e hinos que podem recitar, histórias, animais permitidos e proibidos para comer, as normas e procedimentos adequados para a prática da agricultura, receitas medicinais, entre outras coisas.

A não violência é muito presente nos ensinamentos de Ayvu Rapyta. Os conselhos destinados aos casais enfatizam a importância da construção de um lar harmonioso. A figura masculina é orientada a nunca ser a primeira a se enfurecer na relação. Não brigar com os filhos é um mandamento importante, também (de fato, em uma aldeia, é difícil ver um adulto xingando uma criança). Porém, o mais interessante, para mim, é o mandamento de não debochar de outra pessoa, não menosprezá-la pelos seus possíveis defeitos, físicos ou de outra ordem. Sob pena dos filhos do infrator nascerem com as mesmas características. Se trata de um tipo de código antibullying.

Conhecer essa obra é se aprofundar no universo de um povo. É aprender com o seu modo de vida e sua maneira de ver o mundo. É respeitar uma cultura tão antiga quanto qualquer outra e reconhecê-la, não como algo exótico ou bárbaro, mas como mais uma habitante do planeta, que merece seu espaço. Foi essa troca cultural constante que impulsionou o aprimoramento humano ao longo da história.

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