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“A gente não precisa matar pessoalmente um branco pra ficar contente. Basta o branco morrer que tá tudo bem”. Essa fala da personagem principal de Kriança Índia dá um pouco do tom dessa obra lançada em 2021 pela editora Guará. No melhor estilo nazi lives don’t matter todos os agentes da destruição da floresta amazônica são sumariamente executados. Caçadores, madeireiros e ruralistas encontram seu fim na lança da Kriança Índia.
A personagem criada por Rafa Campos e desenhada por Álvaro Maia é uma criança indígena sem um etnia definida, nem gênero. Como um espírito protetor, ela enfrenta todos os perigos que ameaçam a floresta, acompanhada de seus amigos Kavera, um macaco com cabeça de caveira, e Peçonha, um porco-espinho que lança espinhos venenosos. O livro traz diversas histórias curtas que vão se entrelaçando e contando um pouco da vida da Kriança Índia, de como ela foi encontrada e criada por Matinta Pereira, a bruxa do folclore brasileiro.
O roteiro de Rafa Campos consegue nos brindar com muitas sequencias de ação e, ao mesmo tempo, apresentar a trama que liga todas as partes do livro. Sem falar nas diversas referências à conjuntura política atual, com vilões como Regininha Ruralista, Ministra Danaris, o miliciano Sales e aparições de membros da família Bolsonaro.
É bom lembrar que essa hq já se envolveu em polêmica quando entrou no radar das hordas bolsonaristas na internet. Kriança Índia e seus autores, bem como outros artistas e obras, saíram em uma matéria de um blog de apoiadores de Bolsonaro. Apresentados como assassinos em potencial, o texto tentava chamar a atenção das autoridades sobre os artistas.
Quanto às artes, Álvaro Maia imprime uma variedade de estilos, que deixa a leitura ainda mais dinâmica. Ora prevalecendo as hachuras, ora os grandes contrastes de preto e branco. Com um traço muito orgânico, ele dá um ar fanzineiro à publicação, o que combina muito com a história e deixa a obra ainda mais coesa.
Kriança Índia é uma catarse para todos e todas que tremem de indignação com a devastação e genocídio levados à cabo por um governo comandado por milicianos, garimpeiros, madeireiros e demais escória que precisa ser varrida da nossa sociedade.
Para adquirir o livro, você pode entrar no site da editora Guará.
Por Rafael
No final de 2020 fiquei sabendo, através de um compartilhamento de rede social, sobre uma História em Quadrinhos chamada Ajuricaba, que contava a história do indígena de mesmo nome que liderou uma guerra de cinco anos contra os portugueses na região da Amazônia. Fiquei muito curioso e encomendei a HQ.
Publicada pelo selo Black Eye Studio, o livro possui cerca de 130 páginas de quadrinhos em preto e branco. Escrita por Ademar Vieira, com arte de Jucylande Júnior, a história nos apresenta Ajuricaba, filho do cacique do povo Manao, que mais tarde tomará o lugar de seu pai e enfrentará os portugueses em uma guerra sangrenta e desleal.
A arte estilizada e os contrastes muito bem feitos constroem o clima da história. Que é pesado, como pesado foi o massacre sofrido pelos povos amazônicos no período da conquista europeia. Onde os portugueses adentravam a floresta e invadiam as aldeias, executando pessoas sumariamente e acorrentando homens, mulheres e crianças, sem nenhuma cerimônia. A obra consegue mostrar de forma crua a realidade vivida pelos povos originários do Brasil.
Ajuricaba, o líder do povo Manao, obtém sucesso quando consegue, por um período de tempo, unificar todos os povos da Amazônia numa aliança poderosa, que encarou de igual para igual as forças portuguesas. As rivalidades entre os indígenas, até então, havia sido habilmente manipulada pelos conquistadores para levar adiante o projeto colonial.
Enfim, do povo Manao, hoje em dia, resta muito pouco, nada mais que algumas palavras do seu idioma, como informa o material complementar no final da HQ. O nome da cidade de Manaus, capital do Amazonas, foi escolhido em sua homenagem, talvez para nos lembrar do genocídio cometido nesse país e esquecido por muitos. Equívoco que o livro Ajuricaba vem para corrigir.
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Samaúma é o nome de uma árvore encontrada na floresta amazônica, de tronco muito alto – ultrapassando o dossel da floresta – e raízes tão largas que seria possível entalhar uma casa nelas. Samaúma também é o nome da história em quadrinhos de autoria de Fabio Gimovski, lançada, recentemente, através de um financiamento coletivo, pela plataforma Catarse.
Samaúma: o chamado da floresta conta a história de Ravi, um rapaz da cidade grande que, de repente, é assaltado por sonhos enigmáticos. Às vezes, ouve seu nome ser chamado, outras, está caminhando em uma floresta e, outras ainda, está conversando com um pajé. Uma angustia começa a tomar o seu coração, durante o dia. Então, com a ajuda de uma amiga, decide descobrir o que os sonhos significam. Sua busca o levará para o interior do Acre, onde, em meio a floresta amazônica, se encontrará com o povo shanenawa.
O autor optou por uma espécie de metalinguagem, que nos faz pensar que ele conta sua própria história, a de alguém que escreveu um livro sobre suas experiências com os shanenawa. E parece que o objetivo principal do trabalho é apresentar as histórias desse povo, contadas ao jovem Ravi pelos seus representantes. Nelas, ficamos sabendo da origem dos shanenawa e de como eles descobriram o poder da bebida uni.
A história ainda faz menção à realidade que vivemos no Brasil atualmente, de devastação dos biomas e ataques aos povos indígenas. E nos apresenta um outro modo de vida, uma outra visão de mundo em relação à natureza, que é a dos povos originários, onde os valores são muito distintos aos da sociedade industrial capitalista.
Para saber mais sobre o autor: https://fabiogimovski.org/
Para saber mais sobre o povo shanenawa: https://www.indios.org.br/pt/Povo:Shanenawa
Post relacionado: https://yvycomics.com/2019/01/20/os-indios-de-andre-toral/
Retornamos! Aí está a penúltima página de Êxodo. Um personagem se revela.
Ela firmou o cabo da lança, feito de taquara, na axila. Divisou o saco de serragem que balançava no galho de uma ampla figueira. Se preparou para a investida.
̶ Concentração, Eva. Mantenha o equilíbrio.
Ao lado dela, estava Barnabé, seu futuro marido. Outro jovem guarani que vivia na redução e que já contava seus 20 anos de idade. Ela, 18. Ele a observava, como se a avaliasse. Corrigia sua postura e dava orientações. Apesar do rapaz parecer rude, quem prestasse atenção em seus olhos, veria que havia orgulho neles.
Eva tocou a barriga do cavalo com os calcanhares e disparou em direção ao alvo, Barnabé a seguia, não muito de perto.
̶ Firme, Eva! Firme!
A lança atingiu em cheio o saco de serragem e se prendeu nele. Eva terminou a investida de mãos vazias.
̶ Muito bem. Foi um bom ataque ̶ Elogiou Barnabé, se aproximando com seu cavalo.
Eva sorriu, então, ele continuou.
̶ Mas você perdeu a lança. O que faria se isso acontecesse em uma batalha?
A garota foi virando o rosto, bem devagar.
̶ Bom… eu faria…
De repente, num gesto rápido, ela tirou o poncho que usava e o atirou sobre Barnabé.
̶ Isto!
O jovem guarani se enredou como se estivesse em uma teia. Eva aproveitou o momento e disparou a galope. Barnabé levou alguns instantes para se desvencilhar e logo saiu em disparada atrás dela.
̶ Então, é assim? ̶ Ele tinha um sorriso no rosto, adorava esses joguinhos que ela fazia.
Naquela imensidão verde, apenas os quero-queros eram os espectadores daquela carreira. No fim, foi uma corrida sem vencedor, nem vencido. Os dois terminaram em um pequeno rio, bem raso. Barnabé saltou de seu cavalo, quando se aproximou de Eva, a abraçando por trás. Os dois caíram de suas montarias, sobre a água.
Naquela imensidão verde, apenas os quero-queros e os dois cavalos eram os espectadores do amor entre Eva e Barnabé. Enfim, a garota órfã já não se inquietava tanto sobre seu passado, também ouvia cada vez menos aquele velho chamado que a impelia para fora da redução. Ela apenas vivia sua vida, era até feliz.
O sol começou a se querer se esconder, o casal voltou para casa.
Aquela mesma praia, a mesma escuridão, o mesmo vento. O mesmo cenário. O som das ondas quebrando. Mas Eva não está lá. Ela apenas observa. Algo começa a emergir das ondas. De longe, é apenas uma mancha escura. Mas, quando se aproxima, se vê uma silhueta feminina. A lua joga sua luz sobre a figura. Sim, é uma mulher.
Ela sai da água e se para sobre a areia. Eva nunca viu uma mulher como aquela. Sua pele escura reluz ao luar. Sua boca se abre num sorriso. O brilho dos dentes é arrebatador.
Eva se acordou de um pulo. Estava na sua cama de couro de boi sobre o chão. Ao seu lado, Barnabé continuava dormindo.
Vitória!
O contra-ataque guarani.