A História de Yvytu

“A História de Yvytu” está disponível no amazon kindle, trata-se da novela que conta a origem da personagem Eva, retratada em YVY- Mistérios da Terra, webcomic que ganhou versão impressa em 2021, através de um financiamento coletivo feito na plataforma Catarse.

A novela foi escrita por Rafael Martins da Costa e é uma versão literária da webcomic “Yvytu”, que está sendo veiculada neste blog desde o dia 8 de abril, o link para acessar é o seguinte: https://yvycomics.wordpress.com/comic/capa-yvytu-parte-1/. Temporariamente, as páginas em quadrinhos dessa hq, deixarão de ser subidas para a internet. Mas, em breve, esperamos dar continuidade a ela.

Você pode acessar “A História de Yvytu” no link: https://www.amazon.com.br/dp/B0B75W6RQF

Muito obrigado e até a próxima!

capa do livro
Capa de “A História de Yvytu”.
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A Queda do Céu: o pacto entre dois mundos.

a queda docéu
Capa do livro.

Nem Disney, nem Marvel, muito menos DC, seriam capazes de criar tantas histórias quanto a mitologia yanomami consegue. Exagero? Faça as suas conclusões, lendo A Queda do Céu, obra de autoria do líder desse povo, Davi Kopenawa, e do antropólogo francês, Bruce Albert. Lançado, primeiramente em língua francesa, só foi publicado no Brasil no ano de 2010, pela Cia das Letras. O livro é fruto de um pacto, como coloca Albert, entre dois mundos.

Pacto entre o mundo do antropólogo, pesquisador da cidade, e o mundo do Xamã, o intelectual da floresta. Diferentemente de um trabalho científico, onde um lado relata e analisa o comportamento e a vida do outro, este livro é uma obra escrita por ambos. Pois, ainda que Albert tenha sido o redator das páginas, cada ideia e parágrafo foram supervisionados por Kopenawa. De modo que o produto final representa o depoimento histórico e analítico sobre a luta e a cultura do povo yanomami, feito por um dos seus.

Na obra, temos uma apresentação da rica visão de mundo yanomami e dos seus mitos da criação, onde Omama, o grande criador de tudo, tem papel destacado. Dentro dessa cosmovisão, animais e humanos possuem a mesma origem. Fazendo-os, igualmente, habitantes da floresta, como irmãos. Mas, o mais impressionante, para alguém da cultura letrada, urbana e industrial, é como suas incontáveis histórias passam de geração a geração, de forma oral. Cabendo aos xamãs, o que poderíamos chamar de bibliotecas vivas, o dever de guardá-las. Essas histórias, além de contar como tudo surgiu (inclusive os brancos e suas mercadorias), também organizam o modo de ser desse povo. Elas guardam os ensinamentos de proteção da floresta e das pessoas ao seu redor.    

davi kopenawa
Imagem do interior do livro. Kopenawa é o indígena sem pintura no corpo, abaixo e a esquerda da faixa.

Outro ponto que chama muito a atenção é a análise que Kopenawa faz da socidade dos brancos. Acabamos por nos sentir no papel de objeto de estudo. Para o xamã, estamos sempre tontos, perdidos, procurando orientação nos “desenhos de palavras” que colocamos nas “peles de papel”, pois não somos capazes de guarda-las em nós mesmos. Estamos sempre confusos com o barulho dos motores e o zumbido dos aparelhos de rádio e televisão. O “ruído”, como Kopenawa se refere. Ruído que os brancos levaram para o interior da floresta e também causou confusão na cabeça do seu povo, sobretudo para os jovens, que se encantaram com os equipamentos e mercadorias da cidade, esquecendo-se de suas histórias e de seus espíritos. Sem os seus espíritos, chamados de xapiri, os yanomami não podem existir, como o xamã explica. Eles são responsáveis por evitar “a queda do céu”, por cuidar das doenças, por favorecer a colheita e a caça. Assim como os brancos aprendem com seus livros, os yanomami aprendem com seus xapiri.

Relacionado: Ideias para adiar o fim do mundo.

A história da amizade de 30 anos entre Bruce Albert e Davi Kopenawa, que possibilitou a elaboração do livro, poderia muito bem ser transformada em filme. Albert testemunhou a execução dos megaprojetos de “desenvolvimento” da ditadura militar na floresta amazônica e acompanhou missionários e agentes da FUNAI em suas atividades. Numa dessas, ele encontrou o jovem Kopenawa, que trabalhava como interprete para o posto da FUNAI do rio Demini, no estado de Roraima. Mas a relação levou muito tempo para se consolidar. Só mais tarde, o yanomami vai enxergar no francês um aliado na proteção da floresta e da vida do seu povo. O livro ainda traz um detalhado glossário de palavras yanomami referentes a animais, plantas e topônimos da região. Além da aterradora história do massacre de Haximu, onde mulheres, crianças e idosos yanomami foram mortos por garimpeiros. Ler o livro agora, em 2020, em pleno governo Bolsonaro, em plena hecatombe ambiental brasileira, é chocar-se com a realidade. Não são apenas “desenhos de palavras” em uma “pele de papel”. O que vamos fazer para evitar o nosso fim? Fica a reflexão.

Descomplincando com Kaê Guajajara: o que você precisa saber sobre os povos originários e como ajudar na luta anti-racista.

Kaê Guajajara

Por Rafael.

Recentemente adquiri a versão pdf do livro organizado pela artista e ativista indígena Kaê Guajajara. Trata-se de uma importante obra para o momento em que vivemos, onde, cada vez mais, os direitos dos povos indígenas por suas terras e seus modos de vida são atacados.

O livro é totalmente produzido por representantes dos diferentes povos indígenas brasileiros e se dirige, principalmente, à população não-indígena, branca e/ou habitantes dos centros urbanos.  O objetivo da obra é desmistificar alguns conceitos deturpados que circulam pela sociedade brasileira, em relação aos nativos americanos, ajudando os interessados em apoiar a causa a entendê-la e agir para tal.

Uma das primeiras ideias a ser descontruída na obra é a de “descobrimento” do Brasil, afirmando a importância de se usar o conceito de “invasão”, bem mais adequado para a situação. Depois, temos o debate sobre o uso do termo “índio”, sobre a escravização indígena – pouco comentada – e a catequese. Busca-se entender o processo colonial como um processo de genocídio e etnocídio, conceitos que também são trabalhados no livro.

Entre muitos temas apresentados, nos deparamos com algumas “curiosidades”, se podemos dizer assim. Como o caso da origem da palavra “grilagem”, se referindo ao roubo das terras indígenas, e o uso das palavras “tibira”, que se refere aos indígenas LGBT, e “parente”, que é como os povos originários se dirigem uns aos outros, independentemente de suas etnias.

Mas, um dos capítulos mais importantes, ao meu ver, é o que se destina a explicar as maneiras como nós, não-indígenas, podemos apoiar a causa desse povo, ou melhor, desses povos. E acredite, não é muito difícil fazer isso. Você pode começar indo no perfil da loja Azuruhu no instagram e entrar em contato com eles para descobrir como receber o pdf do livro, que teve sua versão impressa suspensa por causa da pandemia.

Conheça meu livro: Yvytu e o Palavra Bonita.

YVY-Mistérios da Terra/Capítulo 15 – final

                                                 

̶  Yvytu! Achamos o velho Nhee Porã!  ̶ As luzes do dia já se faziam presente sobre o rio Uruguai, e Eva e Odara caminhavam juntas entre os destroços da batalha, quando ouviram o aviso. Era um grupo de guaranis que estavam no interior da mata procurando sobreviventes. Ela correu depressa para o local. Encontrou o avô caído, de barriga para cima. Um ferimento de bala no lado direito do tórax vertia sangue.

Eva se abaixou e, com cuidado, ergueu o velho Moreyra pelos ombros. O pescoço dele não acompanhou o movimento do corpo, pendendo para trás. Ela aconchegou a cabeça do avô em seu peito. Tudo era silêncio na mata. O Palavra Bonita havia se calado para sempre.

Então, alguém se aproximou de Eva, por trás, tocando-lhe o ombro. Era o padre Antônio.

̶  O senhor aqui, padre?  ̶  Eva tinha a voz um pouco embargada.

̶  Claro, minha filha. Fiquei de longe, rezando por você. Como eu já disse, uma vez, você é especial.

Outros guaranis se aproximaram deles e carregaram o corpo do velho Moreyra, o Nhee Porã, para uma canoa. Todos voltariam para a Redução, onde, ao que tudo indica, teria paz por mais algum tempo.

Em meio aos preparativos, Eva notou Odara, à beira do rio, de braços cruzados. A jovem de pele negra tinha um olhar vago, fixo na água corrente, e sorriu, um sorriso afetuoso, quando se voltou para a jovem de pele vermelha que se aproximava dela.

̶  Então, você já sabe o que vai fazer?  ̶  Eva devolvia o sorriso.

̶  Não sei, mas gostaria de voltar para o lugar de onde vim, de onde me arrancaram.

A guarani se aproximou da ex-escreva, tocando-lhe um dos ombros.

­ ̶  Gostaria de ajudar, se eu pudesse  ̶  Odara, apenas sorriu, mais uma vez.

̶  Sabe  ̶   Eva continuou  ̶  preciso acompanhar meu povo ao Yvy Maraêy. A terra sem males.

Odara ficou pensativa por uns instantes, com os olhos imersos na correnteza do rio. Então, perguntou.

̶  E onde fica isso, essa terra sem males?

̶  Não sei, mas meu avô me ensinou que fica em algum lugar à leste. Do outro lado, de lá, da grande água.

Enquanto as duas conversavam, canoas iam cruzando o rio Uruguai, algumas pessoas abanavam para Eva. A jovem guarani havia conquistado uma posição importante entre seu povo.  Odara notava isso, e se voltou para sua nova amiga.

̶  Você disse do outro lado da grande água? Engraçado, é de lá que eu vim.

Capítulo 1

 

 

YVY – Mistérios da Terra/Capítulo 14

Eva não conseguiu decifrar o sentimento no semblante de padre Antônio, quando ela disse que não acompanharia a retirada da Redução e tentaria atrasar o passo dos brasileiros. Ele estaria desapontado com ela por não os acompanhar? Ou a sua expressão representaria incredulidade quanto ao sucesso da empreitada de Eva? De qualquer forma, antes de escurecer, a guarani, o velho Moreyra e Odara partiram, todos a cavalo, para o acampamento dos bandeirantes.

Quando os três se aproximaram do acampamento, apenas a lua e as tochas que carregavam iluminavam a floresta. Odara pôde reconhecer a árvore de largas raízes em que deixara Jerônima. Porém, o corpo da amiga não estava mais lá.

 

̶  Você tem certeza de que a colocou aqui?  ̶  Perguntou a guarani.

̶  Sim, ela já estava sem vida… como isso é possível?

Avô e neta se entreolharam, tinham dúvidas quanto às palavras de Odara. Então, decidiram que aquela não era hora para se preocuparem com aquilo. Agradeceram a ajuda da jovem negra e pediram que ela ficasse onde estava. Agora os dois se aproximariam do acampamento e o plano de Eva e Moreyra seria posto em ação.

Odara concordou e sentou-se para descansar, depois ela iria até os cavalos, que ficaram atados na entrada da floresta. Ela começou a observar com curiosidade o que faziam os outros dois. No escuro, dava para notar que Moreyra usava alguma coisa para traçar riscos no rosto da neta. Quando terminou, Eva tinha, em cada bochecha, um desenho composto por três linhas retas. Uma linha ficava no meio, enquanto as outras duas partiam de uma das extremidades desta, formando alguma coisa parecida com a pata de uma ave.

̶  Com esta pintura, Yvytu, nenhuma arma dos brancos poderá ferir você, ela lhe trará proteção.

Então, o velho guarani deu uma baforada no seu petyngua, o cachimbo mágico, e soprou um pouco de fumaça na neta. Eva, muito séria, encaixou a aljava de flechas e o arco nos ombros e agarrou, com expressão confiante, a sua lança de taquara. Moreyra vasculhou a bolsa que trazia consigo, tirou de lá um pedaço de madeira entalhado em forma de jaguaretê[1]. Segurou o artefato com firmeza e olhou para Eva.

̶  Chegou a nossa hora, minha neta.

Os dois se abraçaram e mergulharam na escuridão da floresta. Odara ela ficou ali.

Eva e Moreyra atravessaram o rio Uruguai sem problemas, o barulho da correnteza soava mais alto naquela hora da noite. O som ajudou a abafar a aproximação dos dois ao acampamento dos brasileiros.

No acampamento, um grupo de bandeirantes se reunia em volta da fogueira, conversavam e passam, de mão em mão, uma garrafa de aguardente. O Diabo Velho estava entre eles.

̶  Então, senhor, quando partiremos?

O Diabo agarrou a garrafa, tomou um gole, passou a manga da camisa na boca e respondeu.

̶  Assim que amanhecer. Já descansamos bastante.

Não muito longe dali, dois bandeirantes montavam guarda.

̶  E então, Henrique, será que enriquecemos dessa vez?  ̶  Perguntou um deles.

 

̶   Depois de um trago da inseparável garrafa de aguardente, ele respondeu:

̶  Assim espero, meu amigo. Parece que esses selvagens que vivem em reduções valem mais. Ouvi que têm uns três mil nessa para onde vamos  ̶  Tomou mais um trago e entregou a garrafa para o colega.

̶  Toma aí, vou mijar  ̶  o outro recebeu a garrafa e deu um sorriso.

̶  Cuidado, nesse mato aí tem onça  ̶  E emborcou a garrafa garganta a baixo.

O homem escutava os passos do colega dentro da mata. De repente, o som da calça sendo desabotoada e do esguicho de urina. Até ali, tudo normal.

Então, de repente, lhe chamou a atenção um som que ele não esperava. Como de uma voz sendo abafada.

̶  Henrique?  ̶  Ele sussurrou, sem obter resposta. Então, faltando-lhe coragem para adentar a mata, ele correu até a fogueira onde estavam os demais bandeirantes. Estes, em princípio, não deram muito crédito à história do colega, e o Diabo Velho permitiu que apenas um deles o acompanhasse.

̶  É aqui, atrás dessa árvore. Vamos!  ̶  Os dois ingressaram na mata e encontraram o corpo do desaparecido. Antes que um deles tivesse tempo para correr e avisar os outros, uma flecha lhe alcançou, como um raio. Aquele ali, nunca mais falaria nada. O sobrevivente, com os olhos arregalados, voltou à toda velocidade para a fogueira.

Desta vez, levaram a história à sério.

̶  Acordem tudo mundo, podemos estar sob ataque  ̶  O Diabo Velho desembainhou sua espada e adentrou a mata com os homens que estavam com ele na fogueira, eram em número de seis.

Do outro lado do rio, uma Odara assustada, sabe-se lá por que ainda estava ali, escutava a movimentação no acampamento. Ela pôde escutar a voz do seu antigo patrão ecoando na noite, ainda que não pudesse discernir que palavras ele gritava.

̶  Eu sei que vocês estão aí! Mostrem-se seus animais! – O líder dos bandeirantes encabeçava a coluna no interior da floresta.

A resposta veio em forma de flecha, farfalhando as folhas das árvores e indo terminar no pescoço do Diabo Velho.

̶  Acertaram o patrão! Acertaram nosso senhor! Acudam!

Um tumulto começou entre os bandeirantes, alguns, paralisados, olhavam para todos os lados, outros tentavam acudir seu patrão, que tinha dificuldades para respirar e agonizava com a seta atravessada na garganta. Dois deles, assustados, tentavam voltar para o acampamento. Estes não conseguiram sair da mata fechada. Uma sombra viva salta de entre as folhagens e cai por cima deles. Era uma enorme onça-pintada. Antes que o animal tocasse no chão, já tinha atingido a cabeça do primeiro bandeirante com uma patada, aquele não voltaria para junto dos seus. Quanto ao segundo, não teve tempo de usar seu mosquete. A mandíbula da onça se fechou sobre a sua garganta e, em instantes, ele não se movia mais. A criatura, então, retornou para a escuridão de onde havia saído.

Tomados pelo pavor, os homens iniciaram um tiroteio, às cegas. Como resposta, mais uma flecha iniciou seu caminho pela noite e encontrou o final do seu trajeto na cabeça de outro bandeirante.

Odara escutou os disparos, agora o acampamento estava muito mais agitado, tomado por um vozerio nervoso. O coração da ex-escrava parecia saltar de seu peito. Ela, então, agarrou firme o pingente de espada, presente de Jerônima, em volta do seu pescoço.

Os três homens restantes do primeiro grupo, descarregaram suas armas atirando à esmo e são atingidos por mais flechas. Só sobrou o Diabo Velho, sozinho na mata, agonizante. Mas, logo, teria companhia. A onça saiu da mata, mais uma vez, e se preparava para dar o bote final sobre o velho bandeirante, quando o estampido de um mosquete interrompeu seu avanço.  O animal voltou para o interior da floresta e uma pequena mancha de sangue, imperceptível no escuro, passou a ocupar o lugar onde ele estava. A chegada dos reforços animou o Diabo Velho que, apesar da flecha no pescoço, levantou-se e grunhiu ordens para caçar os índios escondidos no mato.

Do outro lado do rio, Odara continuava agarrada no seu pingente. Por que ela não ia embora? Essa pergunta ecoava dentro da sua cabeça. Mas não era só isso. Ela também escutava a voz de Jerônima. “Você não é uma escrava”. “Você não é uma escrava”. A mulher negra, vinda do outro lado do oceano, sentia, aos poucos, uma chama acender dentro de si.

Eva não sabia onde estava seu avô. Agora, era só ela. Bem posicionada atrás de uma árvore, ainda pode flechar mais dois homens, as tochas os tornavam alvos mais fáceis. Mas ela teve que deixar sua posição e correr em direção ao rio, as balas zuniam em seus ouvidos. Um dos seus perseguidores se aproximou o bastante da sua lança, a ponto de ser atingido. Já com os pés na água, Eva, então, se preparou para desferir mais uma flechada, talvez a última, antes de ser morta. Quando a primeira tocha saiu de trás das folhagens, ela liberou a sua flecha.

Em princípio, não entendeu do que se tratava, se era alguma magia surpresa do seu avô, mas não foi apenas a sua flecha que atingiu os bandeirantes, foram várias. Então, ela descobriu o que havia acontecido. Os gritos chamaram a sua atenção e ela olhou para trás. Do outro lado do rio estava o povo da Redução. Aqueles poucos velhos e mulheres que não eram considerados aptos para guerreiros e estavam prontos para fugir. Não fugiram, estavam ali. Empunhavam seus arcos e bradavam seus gritos de guerra. Eva ganhara um novo ânimo.

Alguns deles, começavam a atravessar o rio com suas canoas, quando os mosquetes dos bandeirantes voltaram a ressoar, fazendo-os cair de suas embarcações.

“Você não é uma escrava”. “Você não é uma escrava”. A chegada do povo da Redução foi como um combustível para a chama que ardia dentro de Odara.

̶  Eu sei quem eu sou! Eu sei quem eu sou!

Os gritos da mulher chamaram a atenção dos guaranis mais próximos. Ao mesmo tempo, uma lufada de vento os empurrou, derrubando-os.

Eva preparava a última flecha da sua aljava quando um raio desceu do céu e explodiu parte da vegetação à sua frente, onde estavam os bandeirantes. Ela caiu sentada, o barulho a havia atordoado. Enquanto se recobrava, viu o Diabo Velho, que segurava seu pescoço banhado em sangue. E viu que ele apontava e gritava de forma ameaçadora para o alto. Foi quando uma tempestade teve início.

̶  Eu sou Iansã! A rainha do vento e da tempestade!  ̶  Os gritos de Odara se misturavam aos trovões e aos raios.

O céu noturno começava a receber colorações alaranjadas quando a tempestade parecia se acalmar. Os guaranis já haviam, quase todos, atravessado o rio. Os bandeirantes, com a pólvora molhada, preferiam, em sua maioria fugir. Alguns ficaram para proteger seu chefe, que gritava e balançava sua espada, ameaçando seus inimigos.

Bandeirantes e guaranis entraram em luta corporal. Os habitantes da Redução compensaram sua pretensa fraqueza com uma vontade muito maior que a dos seus oponentes. Em pouco tempo, só o Diabo Velho estava em pé.

̶  Índia maldita! Você vai morrer!  ̶  Só o ódio o animava. Tossindo e engasgando, suas ofensas se dirigiam a Eva, que o observava, acompanhada do seu povo. Ela, então, empunhou sua lança e se preparou para atravessá-lo, quando, de repente, mais uma flecha foi se alojar próximo à outra que o senhor de escravos trazia na garganta.

Todos se voltaram para trás e viram a jovem negra segurando um arco, ofegante. Ela também atravessara o rio.

[1] Onça-pintada, em guarani.

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YVY – Mistérios da Terra/Capítulo 13

YVY

YVY

Eva observava aquela jovem que dormia no chão, sobre um couro de boi, no interior do cotiguaçu. Sua pele negra e seus cabelos enrolados eram familiares. A garota havia sido colocada ali há algumas horas e já começava a se mexer, parecia prestes a despertar.

Em pé, ao lado dela, estavam Eva, o velho Moreyra e o padre Antônio. Eva se agachou, segurava um copo de água em uma mão, com a outra, segurou a nunca da jovem.

̶  Tudo bem?  ̶   Eva falou em espanhol, ao mesmo tempo que gesticulava oferecendo a água.

A garota negra deixou que Eva colocasse o copo em sua boca e sorveu o líquido do seu interior. Depois de satisfeita, fez um gesto agradecido com a cabeça e se apoiou em um cotovelo. De repente, ela se pôs inquieta. Olhava ao redor e tateava pelo corpo.

̶  É isso que procura?  ̶  Eva tinha na mão o pingente em forma de espada. A garota fez um gesto afirmativo com a cabeça e esticou o braço para pegar o objeto. Eva fechou a mão e perguntou em português.

̶  Como você se chama?

Odara, então, revelou seu nome, ou, ao menos, como ela era chamada. Contou como fugiu do acampamento do Diabo Velho e sobre sua jornada pela floresta, a noite inteira, até ali.

Depois do relato, os três ouvintes se entreolharam. Eva devolveu o pingente à jovem e voltou-se para o padre.

̶  Então, acredita em nós, agora? Ela confirma minha visão. Esses brasileiros estão aqui para nos atacar.

Padre Antônio balançou a cabeça, como se concordasse com a antiga pupila. Então, deparou-se com o olhar fixo do velho Moreyra. A ideia de que toda a história que o feiticeiro lhe contara pudesse fazer sentido lhe causava repulsa. Então, na tentativa de expulsar esses pensamentos, se dirigiu até a porta e saiu.

̶  O que acha que ele vai fazer, minha neta?  ̶  Quis saber o velho Moreyra.

̶  Acho que vai reunir o cabildo[1]. Agora, só nos resta esperar.

Eva e Moreyra sentaram-se do lado de fora do cotiguaçu, estava um dia quente. Dentro da construção, Odara voltava a dormir.

̶  Essa garota de pele negra estava nas minhas visões, meu avô. O que isso significa?  ̶  Moreyra ouviu a neta e ficou pensativo. Então colocou sua mão sobre a dela, apoiada no banco em que sentavam.

̶  Você vai conduzir nosso povo ao Yvy Maraêy, minha neta. Deve refletir sobre os sinais que aparecem para você.

Os dois não falaram mais, até que, depois de algum tempo, um garoto se aproximou de avô e neta, com um recado. Os caciques reunidos no cabildo gostariam de ver os dois parentes que trouxeram tão importante notícia.

Assim, Eva e Moreyra entraram no salão, onde, sentados em círculo, os membros do cabildo se reuniam. Ao avistarem os dois, eles se levantaram, eram em número de oito. Um guarani, que aparentava ser muito mais velho que todos, inclusive que Moreyra, tomou a palavra.

̶  Irmãos, aproximem-se, queremos ouvir vocês.

Padre Antônio, que não havia se levantado junto com os demais, o fez, então, para dar espaço aos recém-chegados.

̶  É bom ver você, Nhee Porã e saber que está vivo. Você ainda era um jovem quando estive na sua aldeia, antes daquela praga, há muito tempo. Meu coração ficou pesado quando você não quis vir morar aqui conosco.  ̶ Os outros participantes da reunião balançavam as cabeças, concordando com as palavras ditas. O velho, então, voltou-se para Eva.

̶ E você, pequena. A sua partida também nos trouxe tristeza. Você era a última do povo de Nhee Porã. Como um ramo que nasce depois de uma floresta queimada  ̶  Avô e neta receberam as palavras do ancião em silêncio, e ele continuou  ̶  Vivemos com os homens de vestido preto há muito tempo. Mas nunca esquecemos das visões que os sonhos nos trazem. Queremos dizer que acreditamos em você, Eva  ̶  Neta e avô se entreolham satisfeitos  ̶  Mas estamos sem nossos melhores guerreiros, como vamos lutar?

O padre Antônio, imóvel, apenas observava. Sentada ao lado dele, Eva começou a falar.

̶  Meus parentes, agora tenho meu nome guarani, Yvytu Eté. E minha principal preocupação é com a vida do meu povo. Quem traz os brasileiros para nos escravizar é o Anhá! Não espero que vocês lutem agora, meu avô e eu estamos pedindo para vocês irem para longe daqui.

A decisão foi tomada, depois de uma discussão onde cada cacique se posicionou. Padre Antônio não demonstrava concordância, mas aceitou, diante da sua posição de inferioridade. Organizariam carroças, carros-de-boi, mulas, o que quer que fosse, e partiriam em direção ao leste. Eva e o velho Moreyra tinham outro plano para si próprios.

O sol recém ultrapassava seu ponto mais alto no céu, quando os dois foram despertar a jovem chamada Odara. Deram-lhe mais água e esperaram que se recompusesse.

̶  Precisamos da sua ajuda. Queremos que nos leve até onde estão os brasileiros  ̶  Falou Eva. Ao ver que a garota, pensativa, demorava a responder, argumentou:

̶  É hora de retribuir essas pessoas que lhe deram um abrigo quando você precisou.

̶  Sim, eu concordo  ̶  respondeu Odara  ̶  Deixei uma amiga na floresta, quero ver se, ao menos, lhe dou um enterro decente.

[1] Cabildo – Instância política-administrativa da redução, espécie de prefeitura colegiada, que reunia caciques e jesuítas.

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YVY – Mistérios da Terra / Capítulo 12

A Redução parecia tão pequena lá do alto da colina. Eva e o avô levaram quatro dias para chegar até ali. Ela vestia as mesmas roupas de quando deixara o convívio no mundo cristão, o chiripa e as botas de garrão de potro com esporas. Próprias para montaria. Mas ela não pôde montar o tempo todo durante a viagem. Os dois tinham apenas um cavalo. Em boa parte do trajeto, ela puxou o animal pelas rédeas. Montado nele, ia o velho Moreyra. Ao avistar a redução, a ansiedade tomou de conta de Eva e o cavalo teve que carregar um peso extra na parte final da jornada.

O padre Antônio havia acabado há pouco suas orações da manhã, se preparava para aquecer água no fogão de barro quando um menino veio chamá-lo. Ainda segurando a chaleira, ele deixou a cozinha coletiva da redução e foi em direção ao pátio. Ao ver os recém-chegados, foi assaltado com um misto de sentimentos, desde surpresa, ressentimento, até alegria.

Passada a torrente de lembranças de todo tipo, inspirou fundo e sorriu, soltando o ar pelo nariz.

̶ Mais duas ovelhas para meu rebanho?

Avô e neta, em pé, lado a lado, se entreolharam.

̶  Acho que não. Vamos entrando, então  ̶  convidou o sacerdote.

O trio conversava, sentado em roda, enquanto a água da chaleira esquentava. Falaram sobre o inverno, que havia sido muito chuvoso. O padre comentou sobre a chegada de novos moradores à redução, oriundos de uma aldeia próxima dali. Avô e neta contaram sobre as dificuldades da viagem.

Quando a chaleira começou a expelir vapor e a chiar, o padre se levantou e a tirou de cima da chapa de ferro. Encheu uma cuia de erva-mate com a água e tomou um gole, cuspindo, logo em seguida, o líquido que acabara de sorver. Encheu mais uma vez a cuia e voltou a sentar-se próximo aos recém-chegados.

Enquanto o velho sacerdote tomava o Ka’a, reparava na velhice de Moreyra. Tão velho quanto ele mesmo. Como pôde ter vivido tantos anos sozinho na mata? Nunca entenderia essas pessoas sem Deus, pensou. Mas, suas reflexões foram interrompidas.

̶ Padre, temos uma coisa muito importante para dizer. ̶  Eva anunciou  ̶  A Redução corre perigo!

O jesuíta olha para a garota que já foi como sua filha. Volta seu olhar para Moreyra e, então, pergunta.

̶  E que perigo seria esse?

Eva estava pronta para responder, mas o velho guarani tocou em seu ombro, pedindo a palavra.

̶  Padre Antônio. O senhor deve se lembrar do dia em que deixei minha neta com você. Não?

Aquilo já fazia vinte anos, mas o padre Antônio lembrava como se fosse ontem. Fez um gesto afirmativo com a cabeça.

̶  Então, já deve saber de que perigo estamos falando.  ̶  Concluiu.

Antônio agarrou a chaleira mais uma vez, encheu a cuia e a passou para Eva. Então, respirou fundo e coçou o queixo.

̶  Moreyra, você está falando daquela profecia sua sobre Eva ter que ficar comigo para que eu a protegesse do seu… como é mesmo…Anhá?

̶  Meu avô se chama Nhee Porã, padre. E eu, agora, sou Yvytu Ete!  ­̶  Afirmou a garota guarani, com convicção.  ̶  Tive uma visão. E, nessa visão, um exército de paulistas invadia e destruía a Redução.

Tomando a cuia de volta, Antôno repetiu o processo de colocação da água quente e a retornou, agora, para Moreyra.

̶  Deixe-me ver. Então, eu deveria organizar toda a gente que vive aqui para uma retirada e abandonar nossas casas, nosso trabalho, nossa igreja!  ̶  Nessa última palavra o padre levantou o tom de voz, para, então, diminuí-lo logo em seguida.  ̶  Tudo, por causa de uma superstição de selvagens!  ̶  Nesse final, ele levantou a voz uma vez mais.

O ambiente silencia por alguns instantes. Então, Moreyra se vira para sua neta.

̶  Entendeu, Yvytu? A palavra não significa nada para os juruás.

Eva se voltou para o sacerdote.

̶  Padre Antônio, o senhor sempre disse que eu era especial. Eu não entendia o porquê. Mas agora eu sei, agora eu me sinto especial!

O padre cerrou o cenho e seus olhos miraram o vazio durante um tempo. Quando pegou fôlego para falar uma voz se ouviu do lado de fora.

̶  Padre Antônio! Padre Antônio!  ̶ O homem foi até a porta para ver o que acontecia. Eram alguns moradores. Eles seguravam uma mulher negra prestes a desfalecer. Suas vestes estavam esfarrapadas e sujas. Quem seria ela? O padre pensou.

Capítulo 13

 

1499 – O Brasil Antes de Cabral

Por Rafael

1499 o brasil antes de cabral

Há tempos queria ler esse livro e, finalmente, consegui. “1499, o Brasil antes de Cabral”, foi escrito pelo jornalista Reinaldo José Lopes, profissional dedicado a área da divulgação científica, que fez um compilado de todas as principais pesquisas e teorias acerca da saga histórica do Homo Sapiens no continente americano e do seu desenvolvimento até a chegada dos europeus por essas terras. O jornalista concentra sua discussão sobre a história dos povos que habitavam o que viria a se tornar o Brasil de hoje. Porém, para isso, relações com o resto do continente, e do mundo, são estabelecidas. Com a leitura, aprendemos que a história no nosso país não começou com a chegada dos portugueses. Antes disso, verdadeiras cidades e civilizações floresceram e ruíram, batalhas aconteceram, trocas comerciais e intercâmbios de ponta a ponta do continente se deram. Estejam prontos para se surpreenderem com esse livro.

A obra é dividida em ordem cronológica da chegada dos primeiros seres humanos às Américas até o desembarque dos europeus.  Sendo assim, começa com o debate a respeito de como teria ocorrido essa ocupação, há mais de dez mil anos. Se pelo estreito de Bering ou pelo oceano Pacífico, como sugerem algumas opiniões. É muito interessante a maneira como o autor aborda essa discussão, apresentando as teorias e, mais do que isso, o raciocínio que os pesquisadores elaboraram para chegar a elas. Nos brindando com pitadas de conhecimento sobre evolução das espécies e tipos de datação. Não que eu tivesse entendido tudo, mas já me despertou a curiosidade para saber mais.

É igualmente interessante a abordagem sobre as sociedades construtoras dos famosos sambaquis. Essas estruturas feitas de conchas marinhas, encontradas no litoral brasileiro, foram erguidas pelos antepassados dos indígenas que fizeram contato com os portugueses. Esses povos antigos também são chamados de paleoíndios ou paleoamericanos pelos pesquisadores.

O desenvolvimento de antigas cidades na Amazônia abre um leque ainda maior para conhecermos nosso passado. O autor cita os trabalhos de alguns pesquisadores que se dedicam a história desses vestígios, que incluem até uma “Stonehenge amazônica”, além de linhas pelo solo, assim como as famosas “linhas de Nazca”. A abordagem da história dos antigos marajoaras e sua sociedade complexa, com cerâmicas e urnas funerárias nos leva a pensar o quão humana e histórica é essa importante região do nosso continente. Por muito tempo tida como “selvagem” ou “vazia” de população e história.

A abordagem sobre o desenvolvimento da agricultura no nosso continente me deixou muito curioso. Reinaldo comenta sobre a cultura do milho, oriunda do território do atual México, que teria se espalhado de norte a sul das Américas. Como teria acontecido isso? Que histórias nossos rios, nossas montanhas, florestas, trilhas e praias nos contariam se pudessem falar?

O último capítulo do livro tratará da chegada dos europeus por aqui. Quais foram os fatores que fizeram com que esses diversos e numerosos povos que habitavam essas terras sucumbissem à invasão estrangeira? O autor levanta algumas possiblidades estudadas pelos cientistas.

1499 é leitura recomendada para quem quer conhecer mais sobre o passado do nosso continente. Nos ajudando a, quem sabe, encontrarmos nossa história própria nesse mundo. Uma história americana, ainda que europeia e africana também, mas com suas características particulares.

YVY – Mistérios da Terra/Capítulo 11

Mulher negra

A longa coluna formada por carroças, carros de boi, mulas de carga e homens à pé e à cavalo partiu da fazenda de Raposo Velho há um mês. O homem conhecido como Diabo Velho encabeçava a marcha, montado no seu cavalo branco. Haviam chegado ao topo do imenso planalto no interior do continente. A viagem seguia, em meio a uma vasta floresta de pinheiros, em direção ao sul.

Odara estava fascinada com aquelas árvores. Eram muito altas, com os galhos encurvados para cima, bonitas de se ver. O problema era suas folhas secas pelo chão, eram duras e pontiagudas. Para quem, como Odara, andava descalço, era como pisar em pontas de facas.

No começo, quando soube que teria que acompanhar o patrão até o sul da colônia, ficou apreensiva, temendo o que pudesse acontecer no caminho. Mas, ao fim, se sentiu um pouco mais livre do que fechada na casa grande. Ao menos, poderia conhecer paisagens novas.

Ao seu lado, ia sempre Jerônima, sua companheira desde o embarque no navio negreiro. Lhe ajudava com a preparação da comida. Faziam ensopados, feijão com carne seca, pirão de milho, de mandioca. Para preparar as refeições, usavam os animais que o patrão mandou levar na viagem. Mas, às vezes, acontecia de um homem trazer alguma caça, abatida no meio do caminho. Cozinharam bugios, quatis, gambás, jacus, perdizes e muitos outros animais que Odara não conhecia.

Depois de muito tempo viajando, tanto que Odara não podia contar, ou não estava interessada nisso, pararam nas margens de um grande rio. Lhe disseram que o rio se chamava Uruguai. Ali, o Diabo Velho mandou montar acampamento.

̶  Negra, água!  ̶  Odara ouviu, agarrou as bolsas de couro de cabra e foi para o rio, Jerônima a acompanhou.

Chegando lá, as duas se agacharam para encher as bolsas. Quando a sua já estava bem cheia, Odara se levantou, pronta para ir embora. Jerônima permaneceu um pouco mais de tempo agachada.

̶  E então, vamos embora?  ̶  Disse Odara.

Jerônima olhou para a companheira, mas continuou na mesma posição. Então, voltou seu olhar para a outra margem do rio e suspirou.

̶  Você não gostaria de lembrar?

Odara estalou a língua, demonstrando impaciência.

̶   Já lhe disse que não quero lembrar nada! Essa é minha vida agora, eu sou uma escrava!

̶  Mas, e se você nem sempre tivesse sido uma escrava?

Odara não respondeu, abaixou a cabeça pensativa. Depois de um instante, fez um gesto, pedindo que a companheira se apressasse. Jerônima levantou-se com sua bolsa cheia d’água e voltaram para o local onde a coluna montava acampamento.

À noite, Odara se deitou embaixo de uma carroça, sobre uma esteira de palha trançada. Passara o dia fazendo comida e servindo aos homens. As pálpebras, pesadas, fecharam-se com facilidade. Mas não permaneceram assim por muito tempo.

No começo, ela pensou que aqueles sussurros eram parte de um sonho. Porém, as mãos que sacudiram seus ombros a convenceram do contrário. No escuro, ela reconheceu o rosto redondo de Jerônima.

̶  Odara, acorde. Precisamos fugir.

Fugir para onde? Ela quis perguntar. Não conheciam nada, nem ninguém naquele lugar. Quando escutou o som de vozes alteradas pelo álcool, mudou de ideia. Um frio percorreu seu corpo e seu instinto falou mais alto. Decidiu seguir a amiga.

̶  Negrinhaaaa! Cadê você? Tenho algo aqui que você vai gostar!

Era um grupo de homens que fazia parte da coluna liderada pelo Diabo Velho. Conhecidos como bandeirantes. Quando chegaram ao local onde Odara dormia, não a encontraram.

̶  Seus porcos! Eu disse para fazerem silêncio.  ̶  Repreendeu um deles.

Os homens a procuraram em volta, nas outras carroças e barracas. Sem sucesso. Enfim, deduziram que ela pudesse ter aproveitado a escuridão para escapar. Determinados a encontrá-la, buscaram os cães. Os animais esfregaram os focinhos na esteira que servia de cama para Odara. Então, um deles, farejando ao redor, encontrou o rastro da fugitiva. Todos se precipitaram mata adentro, em direção ao rio.

Odara e Jerônima tinham uma boa vantagem em relação aos bandeirantes, mas corriam de forma desajeitada pela floresta. Tropeçavam em raízes, empurravam galhos, pulavam sobre troncos caídos. Só as estrelas e a lua quebravam a escuridão. Odara lembrava da vez em que vira os homens do patrão violentarem uma outra negra da fazenda. Foi quando ela ia lavar roupa no riacho. De repente, enquanto caminhava, ouviu gemidos abafados de desespero e movimento nas folhagens. Ela se esgueirou para descobrir do que se tratava. As lembranças do que ela vira naquele dia, lhe davam mais ânimo para a fuga.

As duas já estavam se aproximando do meio do rio, quando os homens chegaram à margem. Odara acompanhava a amiga com um nado desajeitado, que ela nem ao menos sabia que era capaz de realizar. Ouviu os gritos, os xingamentos e os latidos e, logo depois, as balas que começaram a zunir nos seus ouvidos. Ela engoliu água e cuspia, enchia os pulmões com todo o ar que podia e continuava movimentando pernas e braços, atrapalhada pelos panos que vestia. Aquilo parecia interminável. Enfim, começou a sentir o chão firme sob os pés e se apressou mais ainda.

Quando saíram da água, as duas arfavam. Odara olhava para Jerônima como quem diz, “e agora?”. A amiga não teve tempo de responder coisa alguma. Escutaram mais uma bala assobiar na escuridão e Jerônima caiu. Desesperada, Odara a abraçou e tentou erguê-la, uma das suas mãos sentiu que não era só a umidade da água que molhava as costas da amiga. Arrastaram-se para dentro da mata.

Do outro lado, os bandeirantes tentavam avaliar a situação através da escuridão.

̶  Deixem isso! Não vou entrar nesse rio por causa de uma negra. Vai virar comida de onça, agora.

Após tropeçarem por mais alguns metros, as duas se sentiram seguras o bastante para descansar. Odara escorou a amiga embaixo de uma árvore de raízes grossas e sentou-se ao seu lado. Jerônima tinha o pingente de espada no pescoço. Arrancou ele e o ofereceu para Odara.

̶  Tome, minha querida. Lembre-se, você não é uma escrava.

Odara agarrou o pingente e encostou a cabeça no ombro da amiga. Quando o dia amanheceu, apenas Odara se acordou. Sacudiu Jerônima e percebeu, depois de um tempo, que estaria sozinha dali para frente. Observou em volta, como se guardasse os detalhes daquele lugar. Então, olhou uma última vez para a companheira de tantas jornadas, amarrou o pingente no pescoço e começou a caminhar em direção ao sul.

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YVY-Mistérios da Terra/Capítulo 10

Eva, rebatizada Yvytu Eté, sabia da doença desconhecida que levara embora seus pais e toda a sua tribo. Sabia, também, que ela e seu avô, que a entregou ainda bebê ao padre Antônio, eram os únicos que não tinham sido tocados pela enfermidade. Ouviu de padre Antônio que esse milagre de Deus acontecera para salvá-la e para castigar o velho Moreyra. Salvá-la, pois ela era especial; castigar seu avô, pois não era um bom cristão e viveria sozinho o resto da sua vida.

Porém, naquele dia, ela conheceu outra versão para a sua história. O que a levou a refletir sobre tudo que havia aprendido até então.

̶  Aquela doença foi obra do Anhá, minha neta.

Após escutar seu avô, Eva tomou um gole do ka’a e colocou a cuia de lado. Levantou-se e foi para a entrada da cabana, o sol já começava a espalhar sua luz pela floresta.

Eva já havia aprendido sobre o Anhá, o senhor do mau. Aquele que quer desfazer tudo o que o grande pai Tupã fez. Então, um pensamento veio à sua cabeça, a doença que levou sua tribo foi obra de Deus, como disse o padre, ou do Diabo? Nesse caso, para quem o padre Antônio trabalhava?  Voltou-se para o seu avô.

̶  Mas, por que a doença não nos atacou também?

A jovem foi convidada a voltar para perto da fogueira. O velho Palavra Bonita já preparava o petyngua. Quando ela se sentou, ele lhe alcançou o cachimbo aceso. As primeiras tragadas  arderam no interior da sua boca. Aos poucos, ela foi liberando a fumaça pelo nariz.

Então, devolveu o cachimbo para seu avô e, logo depois de algumas baforadas, o tomou de volta. Esse movimento foi se repetindo e, com o tempo, o ambiente estava tomado pela fumaça branca. O velho Moreyra, as paredes de pau a pique, o telhado de taquara, tudo sumira da vista de Eva.

Ela levantou e começou a andar. Não sabia onde estava. De repente, sentiu que seu pé direito encostava em alguma coisa e olhou para baixo. Era uma pessoa deitada, inerte. Dava pra ver que era um homem do seu povo, e tinha o corpo coberto por feridas cheias de pus. Ela se assustou, voltou o olhar ao redor de si e percebeu que havia muitas pessoas na mesma situação, atiradas pelo chão.

O som de um chocalho chamou sua atenção e ergueu a cabeça para o seu lado direito. Dava para ouvir uma batida ritmada, acompanhada por um canto masculino. Aos poucos, ela foi identificando um vulto em meio à fumaça. Ela se aproximou, com calma, e pode ver com mais clareza. Era o seu avô, mais jovem, do jeito que ela o via em seus sonhos.

Se aproximou mais e pode perceber que ele carregava um bebê no colo. A expressão do homem era de angustia. Seus pés também acompanhavam o ritmo do chocalho, cada vez mais frenético. Então, faíscas luminosas atraíram a atenção de todos para o alto. Eram relâmpagos. Eva começou a se assustar com aquilo tudo. Então, quando, em meio aos clarões, enxergou o rosto de um homem branco, velho, ela caiu sentada, com as mãos protegendo o seu rosto.

O velho, do alto, encarava seu avô, que tinha o bebê no colo. Os olhos azuis do velho chispavam. Sua imensa barba grisalha e os cabelos longos revoavam em meio aos relâmpagos. Seu pavor aumentou quando, de trás da fumaça, viu mais homens brancos. Como aqueles que destruíam a Redução, no seu sonho. Começaram a cercar seu avô, devagar.

Nhee Porã não parou de cantar e tocar seu chocalho em nenhum momento. Ao contrário, fazia isso com cada vez mais vontade. Até que, com uma das mãos, ergueu o bebê bem alto. Eva percebeu que tanto os homens ao redor do seu avô, como o velho que pairava nas alturas, se assustaram e recuaram um pouco. Um vento forte começou a soprar, dispersando a névoa branca. Eva observava tudo, perplexa.

A ventania terminou de afastar a fumaça e, mais uma vez, Eva estava na praia dos seus sonhos. Mas tinha algo diferente. Entre a areia e o mar, havia uma longa paliçada, ameaçadora. O que ela estaria protegendo? O mar ou a terra? Ela não pôde refletir muito sobre isso. Percebeu que já havia voltado para o redor do fogo, junto com o velho Moreyra, que segurava o petyngua e a observava com seus olhos serenos.

̶  Meu avô. O velho de barbas brancas nos olhando lá de cima, era o Anhá?

O velho Nhee Porã balançou a cabeça.

̶  Sim, Yvytu.

̶  Ele que trouxe a doença?

̶  Na verdade, ele trouxe os juruás. Os juruás trouxeram a doença e tudo o mais que atinge nosso povo.  ̶ O avô de Eva bateu o petyngua sobre o fogo, expulsando o conteúdo do cachimbo.  ̶  O poder do meu canto não foi bastante para proteger nossa tribo, só consegui salvar a mim mesmo.  ̶  O velho abaixou a cabeça e esfregou seus olhos, que começavam a lacrimejar.  ̶  Com você foi diferente. Sobreviveu por outro motivo.

Eva enrugou a testa, como quem não estava entendendo nada.

̶  Sim, minha neta. Você sobreviveu porque é especial. Você veio ao mundo para conduzir nosso povo ao Yvy Maraêy. A Terra Sem Males, o paraíso guarani. O Anhá não podia fazer nada contra você.

Era muita informação de uma única vez, Eva sentia sua cabeça ferver. O padre Antônio sempre dizia que ela era especial. Mas, parece que não pelo motivo que ele imaginava. Ela se levantou e começou a andar pela cabana.

̶  O Anhá não podia me matar, mas podia matar nosso povo. Não é isso?

̶  Sim, minha neta. E a única barganha que consegui fazer com ele foi de entregá-la aos homens de vestido preto, em troca de deixar nosso povo em paz.

̶  Então, por isso a minha visão! Comigo fora da Redução, o acordo foi desfeito e os homens brancos estão vindo para destruir tudo.

Ela voltou a se sentar ao redor do fogo, próximo ao seu avô.

 

̶  Mas tem mais uma coisa. Onde fica o Yvy Maraêy?

̶  Não sabemos. Mas, dizem que viajando sempre para a direção do lugar onde o sol nasce, existe a grande água, o Paraguaçu. Que os juruás chamam de oceano Atlântico. O paraíso pode ficar do outro lado da água.

Assim, Eva entendeu mais um elemento recorrente nos seus sonhos, o mar.

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