A História de Yvytu

“A História de Yvytu” está disponível no amazon kindle, trata-se da novela que conta a origem da personagem Eva, retratada em YVY- Mistérios da Terra, webcomic que ganhou versão impressa em 2021, através de um financiamento coletivo feito na plataforma Catarse.

A novela foi escrita por Rafael Martins da Costa e é uma versão literária da webcomic “Yvytu”, que está sendo veiculada neste blog desde o dia 8 de abril, o link para acessar é o seguinte: https://yvycomics.wordpress.com/comic/capa-yvytu-parte-1/. Temporariamente, as páginas em quadrinhos dessa hq, deixarão de ser subidas para a internet. Mas, em breve, esperamos dar continuidade a ela.

Você pode acessar “A História de Yvytu” no link: https://www.amazon.com.br/dp/B0B75W6RQF

Muito obrigado e até a próxima!

capa do livro
Capa de “A História de Yvytu”.
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Página 6

Página de hq
A noite na Redução, depois da missa.

As origens de Eva

Você acompanhou, nos três episódios anteriores de YVY, as aventuras de Eva, a garota guarani que ajudava o seu povo nas cercanias do rio Uruguai. Mas de onde ela saiu? Por que não se comportava como as outras pessoas da Redução? Qual sua relação com o padre Antônio?

Vamos tentar trazer essas respostas nessa nova história que começa hoje, com roteiro e desenhos meus. Construir uma ficção é uma tarefa árdua, onde erramos e acertamos, sempre buscando a melhor narrativa. Depois de muitas conversas, oficinas e reflexões, algumas coisas foram mudadas na personagem e no enredo. Podemos dizer que a partir daqui, começa tudo, ou quase tudo, de novo.

Não perca, toda sexta-feira, uma página nova.

Obrigado pelo apoio de sempre e nos vemos por aí.

Rafael

YVY-Mistérios da Terra/Capítulo 15 – final

                                                 

̶  Yvytu! Achamos o velho Nhee Porã!  ̶ As luzes do dia já se faziam presente sobre o rio Uruguai, e Eva e Odara caminhavam juntas entre os destroços da batalha, quando ouviram o aviso. Era um grupo de guaranis que estavam no interior da mata procurando sobreviventes. Ela correu depressa para o local. Encontrou o avô caído, de barriga para cima. Um ferimento de bala no lado direito do tórax vertia sangue.

Eva se abaixou e, com cuidado, ergueu o velho Moreyra pelos ombros. O pescoço dele não acompanhou o movimento do corpo, pendendo para trás. Ela aconchegou a cabeça do avô em seu peito. Tudo era silêncio na mata. O Palavra Bonita havia se calado para sempre.

Então, alguém se aproximou de Eva, por trás, tocando-lhe o ombro. Era o padre Antônio.

̶  O senhor aqui, padre?  ̶  Eva tinha a voz um pouco embargada.

̶  Claro, minha filha. Fiquei de longe, rezando por você. Como eu já disse, uma vez, você é especial.

Outros guaranis se aproximaram deles e carregaram o corpo do velho Moreyra, o Nhee Porã, para uma canoa. Todos voltariam para a Redução, onde, ao que tudo indica, teria paz por mais algum tempo.

Em meio aos preparativos, Eva notou Odara, à beira do rio, de braços cruzados. A jovem de pele negra tinha um olhar vago, fixo na água corrente, e sorriu, um sorriso afetuoso, quando se voltou para a jovem de pele vermelha que se aproximava dela.

̶  Então, você já sabe o que vai fazer?  ̶  Eva devolvia o sorriso.

̶  Não sei, mas gostaria de voltar para o lugar de onde vim, de onde me arrancaram.

A guarani se aproximou da ex-escreva, tocando-lhe um dos ombros.

­ ̶  Gostaria de ajudar, se eu pudesse  ̶  Odara, apenas sorriu, mais uma vez.

̶  Sabe  ̶   Eva continuou  ̶  preciso acompanhar meu povo ao Yvy Maraêy. A terra sem males.

Odara ficou pensativa por uns instantes, com os olhos imersos na correnteza do rio. Então, perguntou.

̶  E onde fica isso, essa terra sem males?

̶  Não sei, mas meu avô me ensinou que fica em algum lugar à leste. Do outro lado, de lá, da grande água.

Enquanto as duas conversavam, canoas iam cruzando o rio Uruguai, algumas pessoas abanavam para Eva. A jovem guarani havia conquistado uma posição importante entre seu povo.  Odara notava isso, e se voltou para sua nova amiga.

̶  Você disse do outro lado da grande água? Engraçado, é de lá que eu vim.

Capítulo 1

 

 

YVY – Mistérios da Terra/Capítulo 14

Eva não conseguiu decifrar o sentimento no semblante de padre Antônio, quando ela disse que não acompanharia a retirada da Redução e tentaria atrasar o passo dos brasileiros. Ele estaria desapontado com ela por não os acompanhar? Ou a sua expressão representaria incredulidade quanto ao sucesso da empreitada de Eva? De qualquer forma, antes de escurecer, a guarani, o velho Moreyra e Odara partiram, todos a cavalo, para o acampamento dos bandeirantes.

Quando os três se aproximaram do acampamento, apenas a lua e as tochas que carregavam iluminavam a floresta. Odara pôde reconhecer a árvore de largas raízes em que deixara Jerônima. Porém, o corpo da amiga não estava mais lá.

 

̶  Você tem certeza de que a colocou aqui?  ̶  Perguntou a guarani.

̶  Sim, ela já estava sem vida… como isso é possível?

Avô e neta se entreolharam, tinham dúvidas quanto às palavras de Odara. Então, decidiram que aquela não era hora para se preocuparem com aquilo. Agradeceram a ajuda da jovem negra e pediram que ela ficasse onde estava. Agora os dois se aproximariam do acampamento e o plano de Eva e Moreyra seria posto em ação.

Odara concordou e sentou-se para descansar, depois ela iria até os cavalos, que ficaram atados na entrada da floresta. Ela começou a observar com curiosidade o que faziam os outros dois. No escuro, dava para notar que Moreyra usava alguma coisa para traçar riscos no rosto da neta. Quando terminou, Eva tinha, em cada bochecha, um desenho composto por três linhas retas. Uma linha ficava no meio, enquanto as outras duas partiam de uma das extremidades desta, formando alguma coisa parecida com a pata de uma ave.

̶  Com esta pintura, Yvytu, nenhuma arma dos brancos poderá ferir você, ela lhe trará proteção.

Então, o velho guarani deu uma baforada no seu petyngua, o cachimbo mágico, e soprou um pouco de fumaça na neta. Eva, muito séria, encaixou a aljava de flechas e o arco nos ombros e agarrou, com expressão confiante, a sua lança de taquara. Moreyra vasculhou a bolsa que trazia consigo, tirou de lá um pedaço de madeira entalhado em forma de jaguaretê[1]. Segurou o artefato com firmeza e olhou para Eva.

̶  Chegou a nossa hora, minha neta.

Os dois se abraçaram e mergulharam na escuridão da floresta. Odara ela ficou ali.

Eva e Moreyra atravessaram o rio Uruguai sem problemas, o barulho da correnteza soava mais alto naquela hora da noite. O som ajudou a abafar a aproximação dos dois ao acampamento dos brasileiros.

No acampamento, um grupo de bandeirantes se reunia em volta da fogueira, conversavam e passam, de mão em mão, uma garrafa de aguardente. O Diabo Velho estava entre eles.

̶  Então, senhor, quando partiremos?

O Diabo agarrou a garrafa, tomou um gole, passou a manga da camisa na boca e respondeu.

̶  Assim que amanhecer. Já descansamos bastante.

Não muito longe dali, dois bandeirantes montavam guarda.

̶  E então, Henrique, será que enriquecemos dessa vez?  ̶  Perguntou um deles.

 

̶   Depois de um trago da inseparável garrafa de aguardente, ele respondeu:

̶  Assim espero, meu amigo. Parece que esses selvagens que vivem em reduções valem mais. Ouvi que têm uns três mil nessa para onde vamos  ̶  Tomou mais um trago e entregou a garrafa para o colega.

̶  Toma aí, vou mijar  ̶  o outro recebeu a garrafa e deu um sorriso.

̶  Cuidado, nesse mato aí tem onça  ̶  E emborcou a garrafa garganta a baixo.

O homem escutava os passos do colega dentro da mata. De repente, o som da calça sendo desabotoada e do esguicho de urina. Até ali, tudo normal.

Então, de repente, lhe chamou a atenção um som que ele não esperava. Como de uma voz sendo abafada.

̶  Henrique?  ̶  Ele sussurrou, sem obter resposta. Então, faltando-lhe coragem para adentar a mata, ele correu até a fogueira onde estavam os demais bandeirantes. Estes, em princípio, não deram muito crédito à história do colega, e o Diabo Velho permitiu que apenas um deles o acompanhasse.

̶  É aqui, atrás dessa árvore. Vamos!  ̶  Os dois ingressaram na mata e encontraram o corpo do desaparecido. Antes que um deles tivesse tempo para correr e avisar os outros, uma flecha lhe alcançou, como um raio. Aquele ali, nunca mais falaria nada. O sobrevivente, com os olhos arregalados, voltou à toda velocidade para a fogueira.

Desta vez, levaram a história à sério.

̶  Acordem tudo mundo, podemos estar sob ataque  ̶  O Diabo Velho desembainhou sua espada e adentrou a mata com os homens que estavam com ele na fogueira, eram em número de seis.

Do outro lado do rio, uma Odara assustada, sabe-se lá por que ainda estava ali, escutava a movimentação no acampamento. Ela pôde escutar a voz do seu antigo patrão ecoando na noite, ainda que não pudesse discernir que palavras ele gritava.

̶  Eu sei que vocês estão aí! Mostrem-se seus animais! – O líder dos bandeirantes encabeçava a coluna no interior da floresta.

A resposta veio em forma de flecha, farfalhando as folhas das árvores e indo terminar no pescoço do Diabo Velho.

̶  Acertaram o patrão! Acertaram nosso senhor! Acudam!

Um tumulto começou entre os bandeirantes, alguns, paralisados, olhavam para todos os lados, outros tentavam acudir seu patrão, que tinha dificuldades para respirar e agonizava com a seta atravessada na garganta. Dois deles, assustados, tentavam voltar para o acampamento. Estes não conseguiram sair da mata fechada. Uma sombra viva salta de entre as folhagens e cai por cima deles. Era uma enorme onça-pintada. Antes que o animal tocasse no chão, já tinha atingido a cabeça do primeiro bandeirante com uma patada, aquele não voltaria para junto dos seus. Quanto ao segundo, não teve tempo de usar seu mosquete. A mandíbula da onça se fechou sobre a sua garganta e, em instantes, ele não se movia mais. A criatura, então, retornou para a escuridão de onde havia saído.

Tomados pelo pavor, os homens iniciaram um tiroteio, às cegas. Como resposta, mais uma flecha iniciou seu caminho pela noite e encontrou o final do seu trajeto na cabeça de outro bandeirante.

Odara escutou os disparos, agora o acampamento estava muito mais agitado, tomado por um vozerio nervoso. O coração da ex-escrava parecia saltar de seu peito. Ela, então, agarrou firme o pingente de espada, presente de Jerônima, em volta do seu pescoço.

Os três homens restantes do primeiro grupo, descarregaram suas armas atirando à esmo e são atingidos por mais flechas. Só sobrou o Diabo Velho, sozinho na mata, agonizante. Mas, logo, teria companhia. A onça saiu da mata, mais uma vez, e se preparava para dar o bote final sobre o velho bandeirante, quando o estampido de um mosquete interrompeu seu avanço.  O animal voltou para o interior da floresta e uma pequena mancha de sangue, imperceptível no escuro, passou a ocupar o lugar onde ele estava. A chegada dos reforços animou o Diabo Velho que, apesar da flecha no pescoço, levantou-se e grunhiu ordens para caçar os índios escondidos no mato.

Do outro lado do rio, Odara continuava agarrada no seu pingente. Por que ela não ia embora? Essa pergunta ecoava dentro da sua cabeça. Mas não era só isso. Ela também escutava a voz de Jerônima. “Você não é uma escrava”. “Você não é uma escrava”. A mulher negra, vinda do outro lado do oceano, sentia, aos poucos, uma chama acender dentro de si.

Eva não sabia onde estava seu avô. Agora, era só ela. Bem posicionada atrás de uma árvore, ainda pode flechar mais dois homens, as tochas os tornavam alvos mais fáceis. Mas ela teve que deixar sua posição e correr em direção ao rio, as balas zuniam em seus ouvidos. Um dos seus perseguidores se aproximou o bastante da sua lança, a ponto de ser atingido. Já com os pés na água, Eva, então, se preparou para desferir mais uma flechada, talvez a última, antes de ser morta. Quando a primeira tocha saiu de trás das folhagens, ela liberou a sua flecha.

Em princípio, não entendeu do que se tratava, se era alguma magia surpresa do seu avô, mas não foi apenas a sua flecha que atingiu os bandeirantes, foram várias. Então, ela descobriu o que havia acontecido. Os gritos chamaram a sua atenção e ela olhou para trás. Do outro lado do rio estava o povo da Redução. Aqueles poucos velhos e mulheres que não eram considerados aptos para guerreiros e estavam prontos para fugir. Não fugiram, estavam ali. Empunhavam seus arcos e bradavam seus gritos de guerra. Eva ganhara um novo ânimo.

Alguns deles, começavam a atravessar o rio com suas canoas, quando os mosquetes dos bandeirantes voltaram a ressoar, fazendo-os cair de suas embarcações.

“Você não é uma escrava”. “Você não é uma escrava”. A chegada do povo da Redução foi como um combustível para a chama que ardia dentro de Odara.

̶  Eu sei quem eu sou! Eu sei quem eu sou!

Os gritos da mulher chamaram a atenção dos guaranis mais próximos. Ao mesmo tempo, uma lufada de vento os empurrou, derrubando-os.

Eva preparava a última flecha da sua aljava quando um raio desceu do céu e explodiu parte da vegetação à sua frente, onde estavam os bandeirantes. Ela caiu sentada, o barulho a havia atordoado. Enquanto se recobrava, viu o Diabo Velho, que segurava seu pescoço banhado em sangue. E viu que ele apontava e gritava de forma ameaçadora para o alto. Foi quando uma tempestade teve início.

̶  Eu sou Iansã! A rainha do vento e da tempestade!  ̶  Os gritos de Odara se misturavam aos trovões e aos raios.

O céu noturno começava a receber colorações alaranjadas quando a tempestade parecia se acalmar. Os guaranis já haviam, quase todos, atravessado o rio. Os bandeirantes, com a pólvora molhada, preferiam, em sua maioria fugir. Alguns ficaram para proteger seu chefe, que gritava e balançava sua espada, ameaçando seus inimigos.

Bandeirantes e guaranis entraram em luta corporal. Os habitantes da Redução compensaram sua pretensa fraqueza com uma vontade muito maior que a dos seus oponentes. Em pouco tempo, só o Diabo Velho estava em pé.

̶  Índia maldita! Você vai morrer!  ̶  Só o ódio o animava. Tossindo e engasgando, suas ofensas se dirigiam a Eva, que o observava, acompanhada do seu povo. Ela, então, empunhou sua lança e se preparou para atravessá-lo, quando, de repente, mais uma flecha foi se alojar próximo à outra que o senhor de escravos trazia na garganta.

Todos se voltaram para trás e viram a jovem negra segurando um arco, ofegante. Ela também atravessara o rio.

[1] Onça-pintada, em guarani.

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YVY – Mistérios da Terra/Capítulo 13

YVY

YVY

Eva observava aquela jovem que dormia no chão, sobre um couro de boi, no interior do cotiguaçu. Sua pele negra e seus cabelos enrolados eram familiares. A garota havia sido colocada ali há algumas horas e já começava a se mexer, parecia prestes a despertar.

Em pé, ao lado dela, estavam Eva, o velho Moreyra e o padre Antônio. Eva se agachou, segurava um copo de água em uma mão, com a outra, segurou a nunca da jovem.

̶  Tudo bem?  ̶   Eva falou em espanhol, ao mesmo tempo que gesticulava oferecendo a água.

A garota negra deixou que Eva colocasse o copo em sua boca e sorveu o líquido do seu interior. Depois de satisfeita, fez um gesto agradecido com a cabeça e se apoiou em um cotovelo. De repente, ela se pôs inquieta. Olhava ao redor e tateava pelo corpo.

̶  É isso que procura?  ̶  Eva tinha na mão o pingente em forma de espada. A garota fez um gesto afirmativo com a cabeça e esticou o braço para pegar o objeto. Eva fechou a mão e perguntou em português.

̶  Como você se chama?

Odara, então, revelou seu nome, ou, ao menos, como ela era chamada. Contou como fugiu do acampamento do Diabo Velho e sobre sua jornada pela floresta, a noite inteira, até ali.

Depois do relato, os três ouvintes se entreolharam. Eva devolveu o pingente à jovem e voltou-se para o padre.

̶  Então, acredita em nós, agora? Ela confirma minha visão. Esses brasileiros estão aqui para nos atacar.

Padre Antônio balançou a cabeça, como se concordasse com a antiga pupila. Então, deparou-se com o olhar fixo do velho Moreyra. A ideia de que toda a história que o feiticeiro lhe contara pudesse fazer sentido lhe causava repulsa. Então, na tentativa de expulsar esses pensamentos, se dirigiu até a porta e saiu.

̶  O que acha que ele vai fazer, minha neta?  ̶  Quis saber o velho Moreyra.

̶  Acho que vai reunir o cabildo[1]. Agora, só nos resta esperar.

Eva e Moreyra sentaram-se do lado de fora do cotiguaçu, estava um dia quente. Dentro da construção, Odara voltava a dormir.

̶  Essa garota de pele negra estava nas minhas visões, meu avô. O que isso significa?  ̶  Moreyra ouviu a neta e ficou pensativo. Então colocou sua mão sobre a dela, apoiada no banco em que sentavam.

̶  Você vai conduzir nosso povo ao Yvy Maraêy, minha neta. Deve refletir sobre os sinais que aparecem para você.

Os dois não falaram mais, até que, depois de algum tempo, um garoto se aproximou de avô e neta, com um recado. Os caciques reunidos no cabildo gostariam de ver os dois parentes que trouxeram tão importante notícia.

Assim, Eva e Moreyra entraram no salão, onde, sentados em círculo, os membros do cabildo se reuniam. Ao avistarem os dois, eles se levantaram, eram em número de oito. Um guarani, que aparentava ser muito mais velho que todos, inclusive que Moreyra, tomou a palavra.

̶  Irmãos, aproximem-se, queremos ouvir vocês.

Padre Antônio, que não havia se levantado junto com os demais, o fez, então, para dar espaço aos recém-chegados.

̶  É bom ver você, Nhee Porã e saber que está vivo. Você ainda era um jovem quando estive na sua aldeia, antes daquela praga, há muito tempo. Meu coração ficou pesado quando você não quis vir morar aqui conosco.  ̶ Os outros participantes da reunião balançavam as cabeças, concordando com as palavras ditas. O velho, então, voltou-se para Eva.

̶ E você, pequena. A sua partida também nos trouxe tristeza. Você era a última do povo de Nhee Porã. Como um ramo que nasce depois de uma floresta queimada  ̶  Avô e neta receberam as palavras do ancião em silêncio, e ele continuou  ̶  Vivemos com os homens de vestido preto há muito tempo. Mas nunca esquecemos das visões que os sonhos nos trazem. Queremos dizer que acreditamos em você, Eva  ̶  Neta e avô se entreolham satisfeitos  ̶  Mas estamos sem nossos melhores guerreiros, como vamos lutar?

O padre Antônio, imóvel, apenas observava. Sentada ao lado dele, Eva começou a falar.

̶  Meus parentes, agora tenho meu nome guarani, Yvytu Eté. E minha principal preocupação é com a vida do meu povo. Quem traz os brasileiros para nos escravizar é o Anhá! Não espero que vocês lutem agora, meu avô e eu estamos pedindo para vocês irem para longe daqui.

A decisão foi tomada, depois de uma discussão onde cada cacique se posicionou. Padre Antônio não demonstrava concordância, mas aceitou, diante da sua posição de inferioridade. Organizariam carroças, carros-de-boi, mulas, o que quer que fosse, e partiriam em direção ao leste. Eva e o velho Moreyra tinham outro plano para si próprios.

O sol recém ultrapassava seu ponto mais alto no céu, quando os dois foram despertar a jovem chamada Odara. Deram-lhe mais água e esperaram que se recompusesse.

̶  Precisamos da sua ajuda. Queremos que nos leve até onde estão os brasileiros  ̶  Falou Eva. Ao ver que a garota, pensativa, demorava a responder, argumentou:

̶  É hora de retribuir essas pessoas que lhe deram um abrigo quando você precisou.

̶  Sim, eu concordo  ̶  respondeu Odara  ̶  Deixei uma amiga na floresta, quero ver se, ao menos, lhe dou um enterro decente.

[1] Cabildo – Instância política-administrativa da redução, espécie de prefeitura colegiada, que reunia caciques e jesuítas.

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YVY – Mistérios da Terra / Capítulo 12

A Redução parecia tão pequena lá do alto da colina. Eva e o avô levaram quatro dias para chegar até ali. Ela vestia as mesmas roupas de quando deixara o convívio no mundo cristão, o chiripa e as botas de garrão de potro com esporas. Próprias para montaria. Mas ela não pôde montar o tempo todo durante a viagem. Os dois tinham apenas um cavalo. Em boa parte do trajeto, ela puxou o animal pelas rédeas. Montado nele, ia o velho Moreyra. Ao avistar a redução, a ansiedade tomou de conta de Eva e o cavalo teve que carregar um peso extra na parte final da jornada.

O padre Antônio havia acabado há pouco suas orações da manhã, se preparava para aquecer água no fogão de barro quando um menino veio chamá-lo. Ainda segurando a chaleira, ele deixou a cozinha coletiva da redução e foi em direção ao pátio. Ao ver os recém-chegados, foi assaltado com um misto de sentimentos, desde surpresa, ressentimento, até alegria.

Passada a torrente de lembranças de todo tipo, inspirou fundo e sorriu, soltando o ar pelo nariz.

̶ Mais duas ovelhas para meu rebanho?

Avô e neta, em pé, lado a lado, se entreolharam.

̶  Acho que não. Vamos entrando, então  ̶  convidou o sacerdote.

O trio conversava, sentado em roda, enquanto a água da chaleira esquentava. Falaram sobre o inverno, que havia sido muito chuvoso. O padre comentou sobre a chegada de novos moradores à redução, oriundos de uma aldeia próxima dali. Avô e neta contaram sobre as dificuldades da viagem.

Quando a chaleira começou a expelir vapor e a chiar, o padre se levantou e a tirou de cima da chapa de ferro. Encheu uma cuia de erva-mate com a água e tomou um gole, cuspindo, logo em seguida, o líquido que acabara de sorver. Encheu mais uma vez a cuia e voltou a sentar-se próximo aos recém-chegados.

Enquanto o velho sacerdote tomava o Ka’a, reparava na velhice de Moreyra. Tão velho quanto ele mesmo. Como pôde ter vivido tantos anos sozinho na mata? Nunca entenderia essas pessoas sem Deus, pensou. Mas, suas reflexões foram interrompidas.

̶ Padre, temos uma coisa muito importante para dizer. ̶  Eva anunciou  ̶  A Redução corre perigo!

O jesuíta olha para a garota que já foi como sua filha. Volta seu olhar para Moreyra e, então, pergunta.

̶  E que perigo seria esse?

Eva estava pronta para responder, mas o velho guarani tocou em seu ombro, pedindo a palavra.

̶  Padre Antônio. O senhor deve se lembrar do dia em que deixei minha neta com você. Não?

Aquilo já fazia vinte anos, mas o padre Antônio lembrava como se fosse ontem. Fez um gesto afirmativo com a cabeça.

̶  Então, já deve saber de que perigo estamos falando.  ̶  Concluiu.

Antônio agarrou a chaleira mais uma vez, encheu a cuia e a passou para Eva. Então, respirou fundo e coçou o queixo.

̶  Moreyra, você está falando daquela profecia sua sobre Eva ter que ficar comigo para que eu a protegesse do seu… como é mesmo…Anhá?

̶  Meu avô se chama Nhee Porã, padre. E eu, agora, sou Yvytu Ete!  ­̶  Afirmou a garota guarani, com convicção.  ̶  Tive uma visão. E, nessa visão, um exército de paulistas invadia e destruía a Redução.

Tomando a cuia de volta, Antôno repetiu o processo de colocação da água quente e a retornou, agora, para Moreyra.

̶  Deixe-me ver. Então, eu deveria organizar toda a gente que vive aqui para uma retirada e abandonar nossas casas, nosso trabalho, nossa igreja!  ̶  Nessa última palavra o padre levantou o tom de voz, para, então, diminuí-lo logo em seguida.  ̶  Tudo, por causa de uma superstição de selvagens!  ̶  Nesse final, ele levantou a voz uma vez mais.

O ambiente silencia por alguns instantes. Então, Moreyra se vira para sua neta.

̶  Entendeu, Yvytu? A palavra não significa nada para os juruás.

Eva se voltou para o sacerdote.

̶  Padre Antônio, o senhor sempre disse que eu era especial. Eu não entendia o porquê. Mas agora eu sei, agora eu me sinto especial!

O padre cerrou o cenho e seus olhos miraram o vazio durante um tempo. Quando pegou fôlego para falar uma voz se ouviu do lado de fora.

̶  Padre Antônio! Padre Antônio!  ̶ O homem foi até a porta para ver o que acontecia. Eram alguns moradores. Eles seguravam uma mulher negra prestes a desfalecer. Suas vestes estavam esfarrapadas e sujas. Quem seria ela? O padre pensou.

Capítulo 13

 

YVY-Mistéiros da Terra/Capítulo 9

As noites e os dias iam se sucedendo para avô e neta. Com frequência, navegavam pelo Uruguai acima ou abaixo, pescando e conversando. Eva conhecia um novo mundo. Seu ensinamento guarani era todo através das palavras do velho Nhee Porã. Mas também através da prática. Roçando e colhendo milho, conheceu a história de Avati. O jovem guerreiro que ofereceu sua vida para salvar seu povo e, de seus olhos plantados na terra guarani, brotaram as espigas douradas que lhes serviam de alimento. Tomando mate, conheceu a história de Ka’a, a jovem que foi morta pelo seu amado. Sua vida era recheada com as palavras do seu avô.

̶  A palavra é a maior riqueza para nosso povo, minha neta. Somos feitos de palavras. Cada coisa nesse mundo foi criada pela palavra do nosso grande pai, Nhanderu. ̶  Enquanto falava, Nhee Porã entalhava um pequeno pedaço de madeira.

̶  As palavras erradas podem levar para o caminho errado.

O velho guarani terminou de entalhar e deu o artefato para sua neta, recém batizada como Yvytu Eté. Com um sorriso, a garota analisou o objeto. Uma onça de madeira. Então, ela perguntou.

̶  Vovô. O senhor sempre usou as palavras corretas?

Sem responder, o velho abaixou a cabeça, ficou um instante pensativo. Levantou-se, agarrou uma cabaça de água e encheu um recipiente de cerâmica que foi levado ao fogo. Não conversaram mais até a hora de dormir.

Eva vê a Redução, o local em que cresceu. Homens à cavalo adentram por suas ruas. À frente deles, um velho, de barba branca e comprida, dividida no meio, como língua de cobra. Tinha um chapéu de abas largas na cabeça. 

Então, o velho de barba branca grita alguma coisa. Os homens começam a invadir as casas e arrancar as famílias de dentro. Algumas pessoas são mortas sem qualquer cerimônia, com golpes de espada. Os que tentam fugir são alcançados pelos tiros de mosquete ou pistola. A Redução começa a arder.

Eva despertou suando. Uma sensação de medo invadiu seu coração. Sua rede ainda balançava, quando viu seu avô, em pé, ao seu lado. Levou um susto.

̶  Não foi um simples sonho, Yvytu. Há coisas que preciso lhe contar.

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YVY-Mistérios da Terra/Capítulo 8

desenho

Dizia-se que, no caudoloso rio Uruguai, não se precisava de nada para pescar, nenhum tipo de instrumento. Os peixes pulavam sozinhos da água para a sua canoa, se estivesse atravessando ele.  Deus teria tornado a vida muito fácil naquela terra. O próprio padre Antônio se queixava disso, às vezes. Pois, para o gosto dele, os índios trabalhavam muito pouco.

Nas matas próximas a esse rio, vivia o avô de Eva, conhecido como Velho Moreyra. Sua casa era feita de pau-a-pique, com telhado de taquaras. Com muita relutância, ele abrigou Eva ali.

̶ Você não devia ter vindo, menina. Mas, agora já está aqui. ̶  Moreyra abaixou a cabeça e catou alguns gravetos amontoados ao seu lado.

̶ Fico feliz com isso.  ̶ O velho quebrou um graveto e largou na fogueira que estava entre os dois. Eva, em silêncio, não desgrudava os olhos de seu avô. Para ela, era o mesmo homem dos seus sonhos, apenas os cabelos estavam mais grisalhos. Ele continuou.

̶  Agora que está aqui, vai aprender o que os juruás[1] não podem te ensinar. ̶  Usando uma vara,  velho guarani tentava catar uma brasa do fogo, uma bem pequena, a agarrou rapidamente com os dedos ossudos e a colocou no cachimbo que estava preparando. Deu algumas baforadas fortes e foi possível ver o brilho da brasa na boca do artefato. Eva continuou observando em silêncio, então, ela arriscou.

̶  É o que mais quero, meu avô.

̶  Primeira coisa que deve saber é que meu nome verdadeiro não é Moreyra. Esse é o nome que os juruás me deram. Eu tenho um nome guarani. Você disse que se chama Eva, não? Pois, você também terá um nome como o meu.

Os olhos da menina brilhavam. Ela sentia que estava conhecendo um mundo novo e isso era excitante. Seu avô continuou

Aqueles que vieram antes de mim, escolheram me chamar de Nhee Porã. Palavra bonita. Quando chegar a hora, seu nome surgirá, é preciso esperar. Deve ser escolhido com cuidado, pois, para nós, guaranis, nosso nome é a palavra que expressa quem somos. Qual será a sua palavra? Precisamos descobrir.

̶  O velho guarani dá mais uma tragada e, soltando a fumaça, aponta o cachimbo para Eva.

̶  Este é o petyngua. Ele é a nossa porta para o mundo dos espíritos. Eles nos mostrarão qual é a sua palavra.

Aos poucos, o recinto foi se enchendo com a fumaça do petyngua. Eva via seu avô com cada vez mais dificuldade, até que já não podia mais definir quem estava além da névoa. Também não era mais possível ver nem o teto, nem as paredes da residência. Então, uma luz chamou a atenção dela. Eram relâmpagos que riscavam por sobre suas cabeças.

De repente, a visão de Eva foi tapada pelos seus cabelos, parecia que tinham ganhado vida. Na verdade, era o vento que havia adentrado o ambiente e se somado aos relâmpagos. Ela lembrou dos sonhos que vinha tendo. Pôde sentir, inclusive, o ar salgado da praia.

Então, a jovem se pôs de pé. Queria saber onde estava. Começou a ouvir passos, não podiam ser do seu avô, soavam mais como o de uma multidão. Foi aí que, de dentro da névoa, ela viu sair uma senhora guarani. Vestida como o povo da Redução, ela carregava um cesto de taquara nas costas, atrás dela, duas crianças. A essas, se seguiam pessoas adultas, homens, mulheres, mais crianças, mais idosos. Todos passavam diante de Eva e adentram a névoa, uma vez mais. Sabe-se lá para onde iam. Não ligavam para a garota, ela era só uma espectadora, como nos sonhos que tivera.

A névoa, aos poucos, se dissipou. Eva viu-se sentada em volta da fogueira, de novo. Diante dela, o avô Nhee Porã esboçava um leve sorriso.

̶  Você tem o espírito inquieto como o vento, minha neta. Você será Yvytu Eté. O vento sagrado.

[1] Termo guarani para homem branco.

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