YVY – Mistérios da Terra/Capítulo 14

Eva não conseguiu decifrar o sentimento no semblante de padre Antônio, quando ela disse que não acompanharia a retirada da Redução e tentaria atrasar o passo dos brasileiros. Ele estaria desapontado com ela por não os acompanhar? Ou a sua expressão representaria incredulidade quanto ao sucesso da empreitada de Eva? De qualquer forma, antes de escurecer, a guarani, o velho Moreyra e Odara partiram, todos a cavalo, para o acampamento dos bandeirantes.

Quando os três se aproximaram do acampamento, apenas a lua e as tochas que carregavam iluminavam a floresta. Odara pôde reconhecer a árvore de largas raízes em que deixara Jerônima. Porém, o corpo da amiga não estava mais lá.

 

̶  Você tem certeza de que a colocou aqui?  ̶  Perguntou a guarani.

̶  Sim, ela já estava sem vida… como isso é possível?

Avô e neta se entreolharam, tinham dúvidas quanto às palavras de Odara. Então, decidiram que aquela não era hora para se preocuparem com aquilo. Agradeceram a ajuda da jovem negra e pediram que ela ficasse onde estava. Agora os dois se aproximariam do acampamento e o plano de Eva e Moreyra seria posto em ação.

Odara concordou e sentou-se para descansar, depois ela iria até os cavalos, que ficaram atados na entrada da floresta. Ela começou a observar com curiosidade o que faziam os outros dois. No escuro, dava para notar que Moreyra usava alguma coisa para traçar riscos no rosto da neta. Quando terminou, Eva tinha, em cada bochecha, um desenho composto por três linhas retas. Uma linha ficava no meio, enquanto as outras duas partiam de uma das extremidades desta, formando alguma coisa parecida com a pata de uma ave.

̶  Com esta pintura, Yvytu, nenhuma arma dos brancos poderá ferir você, ela lhe trará proteção.

Então, o velho guarani deu uma baforada no seu petyngua, o cachimbo mágico, e soprou um pouco de fumaça na neta. Eva, muito séria, encaixou a aljava de flechas e o arco nos ombros e agarrou, com expressão confiante, a sua lança de taquara. Moreyra vasculhou a bolsa que trazia consigo, tirou de lá um pedaço de madeira entalhado em forma de jaguaretê[1]. Segurou o artefato com firmeza e olhou para Eva.

̶  Chegou a nossa hora, minha neta.

Os dois se abraçaram e mergulharam na escuridão da floresta. Odara ela ficou ali.

Eva e Moreyra atravessaram o rio Uruguai sem problemas, o barulho da correnteza soava mais alto naquela hora da noite. O som ajudou a abafar a aproximação dos dois ao acampamento dos brasileiros.

No acampamento, um grupo de bandeirantes se reunia em volta da fogueira, conversavam e passam, de mão em mão, uma garrafa de aguardente. O Diabo Velho estava entre eles.

̶  Então, senhor, quando partiremos?

O Diabo agarrou a garrafa, tomou um gole, passou a manga da camisa na boca e respondeu.

̶  Assim que amanhecer. Já descansamos bastante.

Não muito longe dali, dois bandeirantes montavam guarda.

̶  E então, Henrique, será que enriquecemos dessa vez?  ̶  Perguntou um deles.

 

̶   Depois de um trago da inseparável garrafa de aguardente, ele respondeu:

̶  Assim espero, meu amigo. Parece que esses selvagens que vivem em reduções valem mais. Ouvi que têm uns três mil nessa para onde vamos  ̶  Tomou mais um trago e entregou a garrafa para o colega.

̶  Toma aí, vou mijar  ̶  o outro recebeu a garrafa e deu um sorriso.

̶  Cuidado, nesse mato aí tem onça  ̶  E emborcou a garrafa garganta a baixo.

O homem escutava os passos do colega dentro da mata. De repente, o som da calça sendo desabotoada e do esguicho de urina. Até ali, tudo normal.

Então, de repente, lhe chamou a atenção um som que ele não esperava. Como de uma voz sendo abafada.

̶  Henrique?  ̶  Ele sussurrou, sem obter resposta. Então, faltando-lhe coragem para adentar a mata, ele correu até a fogueira onde estavam os demais bandeirantes. Estes, em princípio, não deram muito crédito à história do colega, e o Diabo Velho permitiu que apenas um deles o acompanhasse.

̶  É aqui, atrás dessa árvore. Vamos!  ̶  Os dois ingressaram na mata e encontraram o corpo do desaparecido. Antes que um deles tivesse tempo para correr e avisar os outros, uma flecha lhe alcançou, como um raio. Aquele ali, nunca mais falaria nada. O sobrevivente, com os olhos arregalados, voltou à toda velocidade para a fogueira.

Desta vez, levaram a história à sério.

̶  Acordem tudo mundo, podemos estar sob ataque  ̶  O Diabo Velho desembainhou sua espada e adentrou a mata com os homens que estavam com ele na fogueira, eram em número de seis.

Do outro lado do rio, uma Odara assustada, sabe-se lá por que ainda estava ali, escutava a movimentação no acampamento. Ela pôde escutar a voz do seu antigo patrão ecoando na noite, ainda que não pudesse discernir que palavras ele gritava.

̶  Eu sei que vocês estão aí! Mostrem-se seus animais! – O líder dos bandeirantes encabeçava a coluna no interior da floresta.

A resposta veio em forma de flecha, farfalhando as folhas das árvores e indo terminar no pescoço do Diabo Velho.

̶  Acertaram o patrão! Acertaram nosso senhor! Acudam!

Um tumulto começou entre os bandeirantes, alguns, paralisados, olhavam para todos os lados, outros tentavam acudir seu patrão, que tinha dificuldades para respirar e agonizava com a seta atravessada na garganta. Dois deles, assustados, tentavam voltar para o acampamento. Estes não conseguiram sair da mata fechada. Uma sombra viva salta de entre as folhagens e cai por cima deles. Era uma enorme onça-pintada. Antes que o animal tocasse no chão, já tinha atingido a cabeça do primeiro bandeirante com uma patada, aquele não voltaria para junto dos seus. Quanto ao segundo, não teve tempo de usar seu mosquete. A mandíbula da onça se fechou sobre a sua garganta e, em instantes, ele não se movia mais. A criatura, então, retornou para a escuridão de onde havia saído.

Tomados pelo pavor, os homens iniciaram um tiroteio, às cegas. Como resposta, mais uma flecha iniciou seu caminho pela noite e encontrou o final do seu trajeto na cabeça de outro bandeirante.

Odara escutou os disparos, agora o acampamento estava muito mais agitado, tomado por um vozerio nervoso. O coração da ex-escrava parecia saltar de seu peito. Ela, então, agarrou firme o pingente de espada, presente de Jerônima, em volta do seu pescoço.

Os três homens restantes do primeiro grupo, descarregaram suas armas atirando à esmo e são atingidos por mais flechas. Só sobrou o Diabo Velho, sozinho na mata, agonizante. Mas, logo, teria companhia. A onça saiu da mata, mais uma vez, e se preparava para dar o bote final sobre o velho bandeirante, quando o estampido de um mosquete interrompeu seu avanço.  O animal voltou para o interior da floresta e uma pequena mancha de sangue, imperceptível no escuro, passou a ocupar o lugar onde ele estava. A chegada dos reforços animou o Diabo Velho que, apesar da flecha no pescoço, levantou-se e grunhiu ordens para caçar os índios escondidos no mato.

Do outro lado do rio, Odara continuava agarrada no seu pingente. Por que ela não ia embora? Essa pergunta ecoava dentro da sua cabeça. Mas não era só isso. Ela também escutava a voz de Jerônima. “Você não é uma escrava”. “Você não é uma escrava”. A mulher negra, vinda do outro lado do oceano, sentia, aos poucos, uma chama acender dentro de si.

Eva não sabia onde estava seu avô. Agora, era só ela. Bem posicionada atrás de uma árvore, ainda pode flechar mais dois homens, as tochas os tornavam alvos mais fáceis. Mas ela teve que deixar sua posição e correr em direção ao rio, as balas zuniam em seus ouvidos. Um dos seus perseguidores se aproximou o bastante da sua lança, a ponto de ser atingido. Já com os pés na água, Eva, então, se preparou para desferir mais uma flechada, talvez a última, antes de ser morta. Quando a primeira tocha saiu de trás das folhagens, ela liberou a sua flecha.

Em princípio, não entendeu do que se tratava, se era alguma magia surpresa do seu avô, mas não foi apenas a sua flecha que atingiu os bandeirantes, foram várias. Então, ela descobriu o que havia acontecido. Os gritos chamaram a sua atenção e ela olhou para trás. Do outro lado do rio estava o povo da Redução. Aqueles poucos velhos e mulheres que não eram considerados aptos para guerreiros e estavam prontos para fugir. Não fugiram, estavam ali. Empunhavam seus arcos e bradavam seus gritos de guerra. Eva ganhara um novo ânimo.

Alguns deles, começavam a atravessar o rio com suas canoas, quando os mosquetes dos bandeirantes voltaram a ressoar, fazendo-os cair de suas embarcações.

“Você não é uma escrava”. “Você não é uma escrava”. A chegada do povo da Redução foi como um combustível para a chama que ardia dentro de Odara.

̶  Eu sei quem eu sou! Eu sei quem eu sou!

Os gritos da mulher chamaram a atenção dos guaranis mais próximos. Ao mesmo tempo, uma lufada de vento os empurrou, derrubando-os.

Eva preparava a última flecha da sua aljava quando um raio desceu do céu e explodiu parte da vegetação à sua frente, onde estavam os bandeirantes. Ela caiu sentada, o barulho a havia atordoado. Enquanto se recobrava, viu o Diabo Velho, que segurava seu pescoço banhado em sangue. E viu que ele apontava e gritava de forma ameaçadora para o alto. Foi quando uma tempestade teve início.

̶  Eu sou Iansã! A rainha do vento e da tempestade!  ̶  Os gritos de Odara se misturavam aos trovões e aos raios.

O céu noturno começava a receber colorações alaranjadas quando a tempestade parecia se acalmar. Os guaranis já haviam, quase todos, atravessado o rio. Os bandeirantes, com a pólvora molhada, preferiam, em sua maioria fugir. Alguns ficaram para proteger seu chefe, que gritava e balançava sua espada, ameaçando seus inimigos.

Bandeirantes e guaranis entraram em luta corporal. Os habitantes da Redução compensaram sua pretensa fraqueza com uma vontade muito maior que a dos seus oponentes. Em pouco tempo, só o Diabo Velho estava em pé.

̶  Índia maldita! Você vai morrer!  ̶  Só o ódio o animava. Tossindo e engasgando, suas ofensas se dirigiam a Eva, que o observava, acompanhada do seu povo. Ela, então, empunhou sua lança e se preparou para atravessá-lo, quando, de repente, mais uma flecha foi se alojar próximo à outra que o senhor de escravos trazia na garganta.

Todos se voltaram para trás e viram a jovem negra segurando um arco, ofegante. Ela também atravessara o rio.

[1] Onça-pintada, em guarani.

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YVY – Mistérios da Terra/Capítulo 13

YVY

YVY

Eva observava aquela jovem que dormia no chão, sobre um couro de boi, no interior do cotiguaçu. Sua pele negra e seus cabelos enrolados eram familiares. A garota havia sido colocada ali há algumas horas e já começava a se mexer, parecia prestes a despertar.

Em pé, ao lado dela, estavam Eva, o velho Moreyra e o padre Antônio. Eva se agachou, segurava um copo de água em uma mão, com a outra, segurou a nunca da jovem.

̶  Tudo bem?  ̶   Eva falou em espanhol, ao mesmo tempo que gesticulava oferecendo a água.

A garota negra deixou que Eva colocasse o copo em sua boca e sorveu o líquido do seu interior. Depois de satisfeita, fez um gesto agradecido com a cabeça e se apoiou em um cotovelo. De repente, ela se pôs inquieta. Olhava ao redor e tateava pelo corpo.

̶  É isso que procura?  ̶  Eva tinha na mão o pingente em forma de espada. A garota fez um gesto afirmativo com a cabeça e esticou o braço para pegar o objeto. Eva fechou a mão e perguntou em português.

̶  Como você se chama?

Odara, então, revelou seu nome, ou, ao menos, como ela era chamada. Contou como fugiu do acampamento do Diabo Velho e sobre sua jornada pela floresta, a noite inteira, até ali.

Depois do relato, os três ouvintes se entreolharam. Eva devolveu o pingente à jovem e voltou-se para o padre.

̶  Então, acredita em nós, agora? Ela confirma minha visão. Esses brasileiros estão aqui para nos atacar.

Padre Antônio balançou a cabeça, como se concordasse com a antiga pupila. Então, deparou-se com o olhar fixo do velho Moreyra. A ideia de que toda a história que o feiticeiro lhe contara pudesse fazer sentido lhe causava repulsa. Então, na tentativa de expulsar esses pensamentos, se dirigiu até a porta e saiu.

̶  O que acha que ele vai fazer, minha neta?  ̶  Quis saber o velho Moreyra.

̶  Acho que vai reunir o cabildo[1]. Agora, só nos resta esperar.

Eva e Moreyra sentaram-se do lado de fora do cotiguaçu, estava um dia quente. Dentro da construção, Odara voltava a dormir.

̶  Essa garota de pele negra estava nas minhas visões, meu avô. O que isso significa?  ̶  Moreyra ouviu a neta e ficou pensativo. Então colocou sua mão sobre a dela, apoiada no banco em que sentavam.

̶  Você vai conduzir nosso povo ao Yvy Maraêy, minha neta. Deve refletir sobre os sinais que aparecem para você.

Os dois não falaram mais, até que, depois de algum tempo, um garoto se aproximou de avô e neta, com um recado. Os caciques reunidos no cabildo gostariam de ver os dois parentes que trouxeram tão importante notícia.

Assim, Eva e Moreyra entraram no salão, onde, sentados em círculo, os membros do cabildo se reuniam. Ao avistarem os dois, eles se levantaram, eram em número de oito. Um guarani, que aparentava ser muito mais velho que todos, inclusive que Moreyra, tomou a palavra.

̶  Irmãos, aproximem-se, queremos ouvir vocês.

Padre Antônio, que não havia se levantado junto com os demais, o fez, então, para dar espaço aos recém-chegados.

̶  É bom ver você, Nhee Porã e saber que está vivo. Você ainda era um jovem quando estive na sua aldeia, antes daquela praga, há muito tempo. Meu coração ficou pesado quando você não quis vir morar aqui conosco.  ̶ Os outros participantes da reunião balançavam as cabeças, concordando com as palavras ditas. O velho, então, voltou-se para Eva.

̶ E você, pequena. A sua partida também nos trouxe tristeza. Você era a última do povo de Nhee Porã. Como um ramo que nasce depois de uma floresta queimada  ̶  Avô e neta receberam as palavras do ancião em silêncio, e ele continuou  ̶  Vivemos com os homens de vestido preto há muito tempo. Mas nunca esquecemos das visões que os sonhos nos trazem. Queremos dizer que acreditamos em você, Eva  ̶  Neta e avô se entreolham satisfeitos  ̶  Mas estamos sem nossos melhores guerreiros, como vamos lutar?

O padre Antônio, imóvel, apenas observava. Sentada ao lado dele, Eva começou a falar.

̶  Meus parentes, agora tenho meu nome guarani, Yvytu Eté. E minha principal preocupação é com a vida do meu povo. Quem traz os brasileiros para nos escravizar é o Anhá! Não espero que vocês lutem agora, meu avô e eu estamos pedindo para vocês irem para longe daqui.

A decisão foi tomada, depois de uma discussão onde cada cacique se posicionou. Padre Antônio não demonstrava concordância, mas aceitou, diante da sua posição de inferioridade. Organizariam carroças, carros-de-boi, mulas, o que quer que fosse, e partiriam em direção ao leste. Eva e o velho Moreyra tinham outro plano para si próprios.

O sol recém ultrapassava seu ponto mais alto no céu, quando os dois foram despertar a jovem chamada Odara. Deram-lhe mais água e esperaram que se recompusesse.

̶  Precisamos da sua ajuda. Queremos que nos leve até onde estão os brasileiros  ̶  Falou Eva. Ao ver que a garota, pensativa, demorava a responder, argumentou:

̶  É hora de retribuir essas pessoas que lhe deram um abrigo quando você precisou.

̶  Sim, eu concordo  ̶  respondeu Odara  ̶  Deixei uma amiga na floresta, quero ver se, ao menos, lhe dou um enterro decente.

[1] Cabildo – Instância política-administrativa da redução, espécie de prefeitura colegiada, que reunia caciques e jesuítas.

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YVY – Mistérios da Terra / Capítulo 12

A Redução parecia tão pequena lá do alto da colina. Eva e o avô levaram quatro dias para chegar até ali. Ela vestia as mesmas roupas de quando deixara o convívio no mundo cristão, o chiripa e as botas de garrão de potro com esporas. Próprias para montaria. Mas ela não pôde montar o tempo todo durante a viagem. Os dois tinham apenas um cavalo. Em boa parte do trajeto, ela puxou o animal pelas rédeas. Montado nele, ia o velho Moreyra. Ao avistar a redução, a ansiedade tomou de conta de Eva e o cavalo teve que carregar um peso extra na parte final da jornada.

O padre Antônio havia acabado há pouco suas orações da manhã, se preparava para aquecer água no fogão de barro quando um menino veio chamá-lo. Ainda segurando a chaleira, ele deixou a cozinha coletiva da redução e foi em direção ao pátio. Ao ver os recém-chegados, foi assaltado com um misto de sentimentos, desde surpresa, ressentimento, até alegria.

Passada a torrente de lembranças de todo tipo, inspirou fundo e sorriu, soltando o ar pelo nariz.

̶ Mais duas ovelhas para meu rebanho?

Avô e neta, em pé, lado a lado, se entreolharam.

̶  Acho que não. Vamos entrando, então  ̶  convidou o sacerdote.

O trio conversava, sentado em roda, enquanto a água da chaleira esquentava. Falaram sobre o inverno, que havia sido muito chuvoso. O padre comentou sobre a chegada de novos moradores à redução, oriundos de uma aldeia próxima dali. Avô e neta contaram sobre as dificuldades da viagem.

Quando a chaleira começou a expelir vapor e a chiar, o padre se levantou e a tirou de cima da chapa de ferro. Encheu uma cuia de erva-mate com a água e tomou um gole, cuspindo, logo em seguida, o líquido que acabara de sorver. Encheu mais uma vez a cuia e voltou a sentar-se próximo aos recém-chegados.

Enquanto o velho sacerdote tomava o Ka’a, reparava na velhice de Moreyra. Tão velho quanto ele mesmo. Como pôde ter vivido tantos anos sozinho na mata? Nunca entenderia essas pessoas sem Deus, pensou. Mas, suas reflexões foram interrompidas.

̶ Padre, temos uma coisa muito importante para dizer. ̶  Eva anunciou  ̶  A Redução corre perigo!

O jesuíta olha para a garota que já foi como sua filha. Volta seu olhar para Moreyra e, então, pergunta.

̶  E que perigo seria esse?

Eva estava pronta para responder, mas o velho guarani tocou em seu ombro, pedindo a palavra.

̶  Padre Antônio. O senhor deve se lembrar do dia em que deixei minha neta com você. Não?

Aquilo já fazia vinte anos, mas o padre Antônio lembrava como se fosse ontem. Fez um gesto afirmativo com a cabeça.

̶  Então, já deve saber de que perigo estamos falando.  ̶  Concluiu.

Antônio agarrou a chaleira mais uma vez, encheu a cuia e a passou para Eva. Então, respirou fundo e coçou o queixo.

̶  Moreyra, você está falando daquela profecia sua sobre Eva ter que ficar comigo para que eu a protegesse do seu… como é mesmo…Anhá?

̶  Meu avô se chama Nhee Porã, padre. E eu, agora, sou Yvytu Ete!  ­̶  Afirmou a garota guarani, com convicção.  ̶  Tive uma visão. E, nessa visão, um exército de paulistas invadia e destruía a Redução.

Tomando a cuia de volta, Antôno repetiu o processo de colocação da água quente e a retornou, agora, para Moreyra.

̶  Deixe-me ver. Então, eu deveria organizar toda a gente que vive aqui para uma retirada e abandonar nossas casas, nosso trabalho, nossa igreja!  ̶  Nessa última palavra o padre levantou o tom de voz, para, então, diminuí-lo logo em seguida.  ̶  Tudo, por causa de uma superstição de selvagens!  ̶  Nesse final, ele levantou a voz uma vez mais.

O ambiente silencia por alguns instantes. Então, Moreyra se vira para sua neta.

̶  Entendeu, Yvytu? A palavra não significa nada para os juruás.

Eva se voltou para o sacerdote.

̶  Padre Antônio, o senhor sempre disse que eu era especial. Eu não entendia o porquê. Mas agora eu sei, agora eu me sinto especial!

O padre cerrou o cenho e seus olhos miraram o vazio durante um tempo. Quando pegou fôlego para falar uma voz se ouviu do lado de fora.

̶  Padre Antônio! Padre Antônio!  ̶ O homem foi até a porta para ver o que acontecia. Eram alguns moradores. Eles seguravam uma mulher negra prestes a desfalecer. Suas vestes estavam esfarrapadas e sujas. Quem seria ela? O padre pensou.

Capítulo 13